terça-feira, 6 de março de 2012

Quero homenagear Augusto dos Anjos com o “Banquete final”



Escrevo dramaturgia por prazer e desmando, curioso que sou de todas as coisas humanas e desumanas. Escrevi há anos uma peça baseada na poesia do livro EU, de Augusto dos Anjos, obra que completa cem anos da sua primeira edição.

Como se sabe, Augusto morreu sem receber o reconhecimento dos seus contemporâneos. Após um mês da morte do poeta, o escritor José Américo de Almeida escreveu sobre a importância do artista. Foi o primeiro a reconhecer o valor do livro EU e da qualidade do poeta Augusto dos Anjos.

Minha peça fala sobre a temática da morte e a angústia cósmica nos poemas desse monstro sagrado da literatura universal. Muito me ajudou com suas contundentes avaliações o profesor Idalmo da Silva, o maior estudioso, declamador e exaltado entusiasta do poeta na Paraíba de hoje.

Na minha peça, a ideia da degradação progressiva do cosmo e, por tabela, do homem, é levada através do auto-canibalismo do ator que come suas próprias carnes. É o “Banquete final”. No centenário do livro de Augusto, estou tentando verbas públicas para montar o espetáculo, com direção do conceituado teatrólogo Luiz Carlos Cândido.

Uma cena da peça “O Banquete final”:

HOMEM 3
(ARRANCA O BRAÇO DIREITO DO HOMEM 4, QUE LANÇA UM GRITO DE DOR)
Só te resta expulsar, aos bocados, a existência,
numa bacia autômata de barro,
alucinado, vendo em cada escarro
o retrato da própria consciência.

(DEVORA O BRAÇO DO HOMEM 4) Ah, eu vejo revoar pelos séculos vindouros o ruído desses ossos que estraçalho. Esses restos repugnantes  que abocalho e o uivo desenganado deste porco serão o último pão que Deus fez para matar a fome dessa raça.

(EFEITO. HOMEM 4 RECOLHE SEU PRÓPRIO BRAÇO, COLOCA-O NA MESINHA QUE A ATRIZ PÕE NO CENTRO DO PALCO. HOMEM 4 DEBRUÇA-SE SOBRE O MEMBRO AMPUTADO, CHORANDO)

ATRIZ
(ACENDE VELAS, LUZ ARREFECE) É impressionante a quantidade de braços arrancados que se vê hoje em dia. Eles estão apodrecendo pelos caminhos. Braços espalhados por toda parte.

HOMEM 4
E o que vai acontecer comigo? Há uma coisa que ignoras. Uma coisa que nunca pensei antes e que agora me vem à mente.

ATRIZ
E o que é? Se me disseres que perderei meu braço, te digo que esse meu braço é como uma vela fúnebre de cera que velará a podridão do teu braço.

HOMEM 4
Não, é sobre o verme.

ATRIZ
Não me fale de vermes, eu tenho nojo.

HOMEM 4
Mas eles são o fator universal do transformismo (SENTA-SE NO DIVÃ) Lembro-me do meu pai. Os vermes que almoçaram a podridão das vísceras do meu pai.

ATRIZ
Vísceras! Que horror!

HOMEM 4
Sim, vísceras. Os vermes que jantaram as vísceras magras do meu pai, certamente tiveram filhos, e eles com certeza comerão uma porção do meu braço. (EXTASIADO) E se eles vão comer essa carne podre, certamente serão meus irmãos.

ATRIZ
Nem ao menos podes esconder de mim esse raciocínio macabro?

HOMEM 4
Quando roerem todos os meus ossos, os meus nervos, quando eu voltar à pátria da bactéria, minha mão inchada por certo estará chamando por ti.

ATRIZ
(HISTERISMO) Sim, sim, homem miserável e hediondo! É verdade! É verdade... Essa idéia de desintegração familiar é uma boa idéia. Os vermes que roerão minha carcaça na tumba serão parentes dos que roem teus ossos. (DEVORA O BRAÇO DO HOMEM 4, QUE SE RETORCE DE DOR E FINALMENTE CAI)
Vês, ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a ingratidão, essa pantera,
Foi tua companheira inseparável.

Acostuma-te à lama que te espera,
O homem que nessa terra miserável
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

(CORTEJO DE MORTOS VIVOS. MÁSCARAS)



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