terça-feira, 26 de setembro de 2017

Vida de aguadeiro


“Aguadeiro” é o mercador de água nas comunidades sem saneamento básico. Profissão quase extinta, lembrei da dita cuja ao ver a fotografia acima, postada por alguém no Facebook. Em passant, evoco o enunciado sinistro: sessentões quando começam a rememorar o passado, alguma coisa vai mal.

Eu era rapazinho de seus doze anos, ajudante de “aguadeiro”.  Meu primo Adiel era orgulhoso possuidor de seis ou sete burros e burras, tropa especializada em transportar água das cacimbas do rio Paraíba para as formas, tanques e potes da população sequiosa. Passávamos o dia enchendo e esvaziando latas, tangendo jumentos no chicote e no grito. Era um clamor maluco na beira do rio e pelas ruas da cidade. Dezenas de aguadeiros e seus jumentos a gritar, a zurrar, a relinchar e principalmente sujar as ruas com aquele excremento verdinho e de formato esquisito. Sendo a grande vocação nacional a chacota maliciosa, mesmo inconveniente para essa crônica sonhadora e metida a memorialista, repasso a velha piada abaladora daqueles chatos entendedores de tudo, as “enciclopédias ambulantes e vazias”. Pergunta-se ao aporrinhante falso experto como tirar a raiz quadrada de um número negativo da popularidade de Temer. Aí, lasca-se a interrogação manhosa: “por que os burros cagam quadrado se os seus cus são redondos?” Não dá outra. No vácuo da indecisão do sabidão, a gente desacata: “Se não entende de merda de burro, vai entender de que?”

Me lembro que naquelas praias saborosas do rio Paraíba morava nosso universo prazenteiro dos verdes anos. A “pelada” debaixo da ponte, onde eu era famoso pelo potente chute de direita e a marcação competente com a bola “dente-de-leite”, as pescarias dos pequenos guarus para frituras inábeis, as primeiras lascívias diante da incontinência das lavadeiras de roupa mostrando suas calçolas aos meninos inocentes, o estrépito das cavalgadas loucas dos jumentos no cio, os burros cobrindo as parceiras com suas jebas imensas, as experiências dos garotos mais velhos com as burrinhas mais dóceis. Era nosso desenvolvimento psicossexual aprimorado pelo universo bestial dos jegues aguadeiros e as humildes lavadeiras com seu charme rústico.

Admito que jamais me derreti com os carinhos de uma jumentinha mansa. Zoofilia não foi minha praia. Especialista em cubar os lances das senhoras lavadeiras, fiz curso intensivo de onanista nos intervalos das viagens com a tropa. Fiz-me conhecido pelas lavadeiras, um pequenino devasso com habilidade manual. Por meu notório saber na arte da masturbação, encantava as matronas, desvanecidas pelo poder rudimentar de atrair imberbes concubinos quiméricos.

À medida em que a metamorfose da vida ia operando no meu corpo, crescia a curiosidade de provar daqueles segredos sedutores guardados nas calçolas das madames lavandeiras. Um fato era patente: quando mais provecta, mais acessível era a lavadeira. Uma delas, de seus sessenta anos, me flagrou prestando atenção nas suas partes de baixo. “Nunca viu a barata não, meu filho? Quer ver de perto, venha”. Eu fui.

Envelheci e o rio nunca mais encheu cacimbas. Os jumentos são raros e as lavadeiras só deixaram o trajeto de suas jornadas voluptuosas rio abaixo na minha memória de guri. Percebo que a felicidade era aquela velhinha sorridente e dadivosa, humildemente lasciva, de rugosas e tentadoras pétalas, nutrindo-me nas primeiras vibrações de menino homem. Eu era um ser livre. No arcabouço e no mistério do nosso interior, sempre sobrevive um pedaço desse moleque. Não pode ditar os rumos da vida, mas ameniza alguns tremores e rangeres de dente. Se bem que tem gente que esqueceu de nascer. Esses, não carregam nenhum moleque descarado e um tanto ninfomaníaco.

Perdi a virgindade na curva do rio, no poço do aprazimento senil, o que é uma rima torta sem chegar à solução. O jeito é botar o ponto final com o verso de Bráulio Bessa:

Nem toda curva da vida 
Tem uma placa de aviso
E nem sempre o que se perde
É de fato um prejuízo.


domingo, 24 de setembro de 2017

POEMA DO DOMINGO


Teia de Aranha


Teci durante a noite a teia astuciosa
dum poema
Armei o laço ao sol que há-de nascer.
Rede frágil de versos
É nela que meu sono se futura
eterno e natural
Embalado na própria sepultura
vens ou não vens agora, astro real,
Doirar os fios desta baba impura?


Miguel Torga

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Rádio livre e cidadania nas quebradas

Beto Palhano, Danielly Gomes, Dalmo Oliveira, Fábio Mozart e a articuladora cultural Mariah Castro, de Pilar. 

Fábio Mozart*

Nesta quarta-feira (20) a Rádio Comunitária Zumbi foi ao sítio Jacaré, zona rural de Pilar, transmitir o desfile cívico da Escola Estadual Maria Alves de Brito. Recebemos um troféu de honra ao mérito, “comunicadores amigos da educação”. Cidadania comunicativa sempre foi nossa estratégia de ação e de participação no espaço público. Já nos articulamos com radialistas comunitários de Itabaiana, Gurinhém, Pilar, Conde e comunidades da grande João Pessoa, a exemplo da Casa Verde de Bayeux, participando da troca de experiências e ajuda mútua em prol da livre manifestação dos pensamentos nas camadas mais despossuídas. Sempre na perspectiva de promover a própria palavra dos que nunca têm voz, na prática de cidadania e participação dos sujeitos.

Dona Antonia, testemunha ainda viva da história da comunidade, aos 85 anos, contou histórias fantásticas sobre seu sítio Jacaré. Os povos do campo são especialistas em sobrevivência. A anciã caminhava seis quilômetros todos os dias, carregando nas costas um garajau de mandioca para a produção de farinha. Tem orgulho de sua capacidade física e dos seus valores de toda uma longa vida.

A nova geração é representada por jovens como Danielly Gomes, líder comunitária, valente no seu papel de estraga-festa, incomodando ao poder e aos poderosos, denunciando o errado, lutando pela dignidade do seu povo. Muito interessante observar a visão crítica de mulheres do  naipe de Danielly. Tipo de gente capaz de vislumbrar o que não quer antes de saber o que quer. Nos confrontos com os poderosos locais, vai afirmando sua cidadania e dos seus conterrâneos. Tem orgulho de sua escola, onde se faz curso de letramento e de cidadania, sob o comando gentil e carismático da professora Íriam Maria. Estimulante e confortador saber que uma comunidade rural tem altivez e segue construindo seu mundo com experiências vividas em carne e alma próprias, neste Brasil perturbadoramente alienado. A consciência é incômoda, já dizia o poeta Benedetti. Os graúdos da região já não podem usar o povo como massa de manobra da forma que faziam há séculos, porque tem a escola que educa para a cidadania e lideranças como Danielly, porta-voz de um povo em construção. Tem como ídolo o governador Ricardo Coutinho. Elogia a presença de forte impacto do governo paraibano na educação pública, melhorando a qualidade da escola e valorizando os mestres. “Aqui, temos o sonho de construir a quadra de esportes, proposta que colocamos por duas vezes no Orçamento Democrático, mas tenho esperança de ver esse equipamento a serviço da comunidade”, afirmou Íriam, mentora do educandário reconhecido como “escola de valor”, premiada pelas suas experiências administrativas e práticas pedagógicas bem-sucedidas.

A Escola Maria Alves de Brito mostrou índices que comprovam a evolução qualitativa dos indicadores educacionais: crescimento de matrícula, crescimento de aprovação e redução de reprovação. Com Conselho Escolar atuante, a Escola Maria Alves de Brito estabeleceu parcerias com segmentos da comunidade, voltadas para o desenvolvimento de projetos que garantam melhorias para a escola e alcance dos objetivos propostos pelo Projeto de intervenção pedagógica para o ano letivo.

A diretora, Iriam Maria Araújo Rodrigues dedicou o Prêmio à equipe escolar “que se esforçou e conseguiu mostrar que, numa comunidade rural de Pilar, professores e demais trabalhadores da educação têm real compromisso com os propósitos educacionais”. Além do cumprimento das metas, a escola comprovou a manutenção dos bens, espaços físicos e limpeza, critérios também para a obtenção do Prêmio Escola de Valor.

Na sua fala, o jornalista Dalmo Oliveira, representando a Rádio Comunitária Zumbi dos Palmares, enfatizou que o Brasil anda perigosamente numa fase em que as pessoas são levadas a anestesiar sua capacidade de se importar, de se comprometer com a melhoria da vida dos outros. “Nós, que fazemos radialismo comunitário, vivemos de paixão, masterizando e compartilhando com as pessoas, olhando para quem elas profundamente são. E aqui no Jacaré de Pilar, vislumbramos o poder da empatia, a cordialidade e o espírito de luta em um corpo social historicamente esquecido, como são os habitantes da zona rural”. Para ele, é isso que alimenta os sonhadores por um mundo melhor, que faz crescer e empoderar, evoluindo sempre.

Valeu muito auxiliar na divulgação dos enfrentamentos dessa galera. Seremos sempre parceiros, clara e explicitamente defendendo nosso lado, o lado das classes populares, em defesa de uma rádio comunitária autêntica e cidadã. Sempre é restaurador perceber que a capacidade de resistência do nosso povo ainda subsiste, apesar desse “momento acidente”.

·        (Coluna ELEJÓ - Jornal A União - A ser publicada em 24/09/2017)


terça-feira, 19 de setembro de 2017

ETC & ETC

·      


   TOADA DE TERREIRO, de Fábio Mozart e Orlando Otávio, faixa do álbum "Music from Paraíba" e Mostra SESC 2011.

No RadioTube:
https://www.radiotube.org.br/audio-4745WPvO4wabY


    Professor de Itabaiana faz pesquisa histórica sobre sua cidade. Pediu emprestada minha coleção de jornais antigos. A história abordada na sala de aula precisa de vida que vem com as traças. Os vermes tiveram papel precursor na evolução. 

***

·       A poeta Cristine Nobre assumiu a Cadeira 12 da Academia de Cordel do Vale do Paraíba. O patrono é Manoel Camilo, o homem que inventou o país de São Saruê, um sertão diferente da imagem que se tem de nossa realidade nordestina. Construiu um novo olhar utópico sobre o cenário nordestino através da literatura de cordel.

***


·       Conto rápido: o homem sobe na amurada de ponte, olha o abismo e se prepara para o suicídio. O policial consegue chegar próximo, conversam durante dois minutos. Depois, os dois se jogam no precipício. Isso sim, é poder de persuasão! 

domingo, 10 de setembro de 2017

POEMA DE DOMINGO


QUADRÃO
Eu canto o quadro quadrado,
Quadrado bem quadrejado,
Meu quadro é quadriculado
Por causa da quadração,
Porque minhas quadras são
De maneira bem quadrada.
Por isso meu verso enquadra
Quadrado, quadro, quadrão”.

Cego Aderaldo (1878-1967) poeta popular cearense

terça-feira, 5 de setembro de 2017

SOBRE O LIVRO DE EVANIO TEIXEIRA


Evanio Teixeira deve ser entendido como um fenômeno. Nasceu no sítio, cercado por solidão literária, foi contaminada pela poesia e hoje faz um trabalho bom, porque transporta objetos imateriais diretamente para a sensibilidade do leitor. Isso é poesia.

Evanio insiste na sua poesia de qualidade, porque acha que a fantasia é a única a preservar a plenitude da vida. Sem se afastar da verdade poética, que é o princípio da interpretação do estar no mundo com a linguagem dos transformadores.

A poesia dá vantagens de ordem simbólica ao poetista. “Poesia não é farinha, mas ajuda a viver”, conforme meu compadre poeta Pádua Gorrion, de Itatuba. Os dois são meus confrades na Academia de Cordel do Vale do Paraíba. Estou convencido de que o alvo dos poetas é seu próprio cérebro. Ou “coração”, conforme os líricos. Escrevemos para nosso próprio gozo.

Evanio Teixeira também faz cordel. Uma poesia dita “popular”, trilhando pelos caminhos da modernidade, observando a técnica. A cabeça poética de Evanio fabrica versos amargurados e belos, nascidos sem médico nem parteira, cabendo nos versos livres ou aprisionados pelo metro do cordel. Falando em prisão, a moda é dizer que estamos resgatando o cordel. “Se é assim, quem o sequestrou?”, indaga o poeta Marco Haurélio. 

domingo, 3 de setembro de 2017

POEMA DO DOMINGO


POEMA DA CRIAÇÃO 

O rio não quer ir à parte alguma, 
Ele apenas quer ser livre, não cativo 
De um destino inexorável e incisivo 
Que ao final se desvanece qual espuma. 

Rio bravo que extrapola do seu leito 
Em momento de extrema liberdade, 
Na aquática desordem que invade 
Os limites do certo e do direito. 

É assim o artista na porfia 
Do momento supremo e criador 
Quando brinca de Deus e traça o mundo 
De acordo com estranha geografia. 


F. Mozart

sábado, 2 de setembro de 2017

Livro de Fábio Mozart vira roteiro de vídeo sobre violência política

“Sem ter raiz, a tropa suicida se veste de excremento e cheira cola”. Este é um dos versos do poema “Pátria armada”, de Fábio Mozart, do livro com o mesmo título publicado em 2000, que serve como base do roteiro de vídeo produzido e dirigido por Marcos Veloso, videasta paraibano. O vídeo está em fase de pré-produção.

O filme terá intérpretes novatos na tela, como Dalmo Oliveira e João Jales. “Vibrei com a leitura do roteiro, bastante interessante sobre repressão política pelo viés poético”, disse João Jales, produtor cultural e integrante do projeto de rádio web da Rádio Comunitária Zumbi dos Palmares. A temática passa também pela tortura como instrumento de investigação policial.

Marcos Veloso já produziu vários filmes em vídeo, aperfeiçoando-se e se especializando em trabalhos de ficção. Militante do cinema sem dinheiro, Veloso confessa que o tema sempre o rondou. “Peguei o argumento no livro de Fábio Mozart e ainda aproveito a música, composição de Hugo Tavares em cima dessa poesia para ser o tema do vídeo”, informou. “Transformar o poema em vídeo vem da necessidade de buscar novas formas de misturar poesia com imagens, sem querer ser um trabalho experimental ou de vanguarda”, adiantou Veloso.