terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Rua dos Ferroviários


 
    
Hilda Rodrigues Palhano, (minha mãe), tinha muita preocupação com nossa educação e de tanto insistir e solicitar a meu pai (Manoel de Araújo Palhano) ficou resolvido que sairíamos daquele pedaço. Nosso destino seria agora a Avenida dos Ferroviários, nº 48. Pelo nome da rua percebe-se que aglomerava vários trabalhadores da Rede Ferroviária do Nordeste. A casa que ficamos nessa avenida tinha a parte frontal no nível da rua e a parte de trás em função do terreno desnivelado possuía nível muito elevado, para termos idéia, abaixo da cozinha havia o porão, um piso ao rés-do-chão. 

     Dali havia uma proximidade latente com a Rua do Cochila que hoje é denominada de Rua Vereador Luis Martins de Carvalho. Era lá defronte a “Casa da Mãe Pobre” aonde se armava os mais diversificados circos. Para entrar no circo para assistir aos espetáculos havia várias hipóteses: a primeira era ir à bilheteria e comprar o ingresso; essa, antes de existir já estava descartada; dinheiro? Nem pensar! 

     Contudo as outras cinco nos davam possibilidades reais de termos acesso à geral, ou seja, aos puleiros como eram conhecidos popularmente. E nos abria a oportunidade de ver aquele mágico espetáculo que acontecia debaixo daquela cobiçada e gigantesca lona, eram: a) entrar pelo buraco; b) caminhar atrás do palhaço perna de pau; c) pegar gatos para servir de almoço aos leões; d) ganhar ingressos quando minha mãe se tornava a costureira oficial do circo; e e) assistir da cozinha de nossa casa, quando o circo não tinha a lona superior, esses eram mais conhecidos como “Circos Deus tomara que não chova!”.

      Foram várias as vezes que entrei “pelo buraco” para assistir aos espetáculos. Era uma aventura muito arriscada, mas só acontecia com o apoio de outros colegas, visto que era necessário ultrapassar algumas barreiras. No circo, além da cerca, havia vigias rondando a área entre a lona vertical e a cerca de isolamento interno. Portanto, tínhamos que ser ágil; enquanto alguns colegas chamavam a atenção dos vigias para um lado, do lado oposto outro grupo passava a cerca e em seguida por debaixo da lona. Pronto! Já estávamos dentro do circo e quase seguros. Muitas vezes algum funcionário percebia aquela ligeira movimentação e botava uns dois para fora do circo, esses perdiam o espetáculo; “entrar pelo buraco” era para os meninos da época, entrar por baixo da lona sem pagar.

     Muitas vezes para ter acesso aos espetáculos, andava atrás do palhaço perna de pau, que caminhava por várias ruas do bairro, falando em alto e bom som determinadas estrofes e a criançada respondendo:

Palhaço: - Hoje tem espetáculo?
Crianças: - Tem sim senhor!
Palhaço: - Às oito horas da noite?
Crianças: - Tem sim senhor!
Palhaço: - Arrooooooooocha negrada...
Crianças: - (Gritando) Heeeeeeeeeeeeee!!!
Palhaço: - Mais um bocadinho!
Crianças: - Heeeeeeeeeeeeeeeee!!!
Palhaço: - E o palhaço o que é?
Crianças: - É ladrão de mulher!

     A própria situação em que se apresentava o palhaço já era por si só, mágica: visto que o mesmo possuía roupas coloridas e longas pernas. Para a criançada, todos pequenininhos, aquilo já não era um palhaço perna de pau, mas um verdadeiro gigante colorido e com uma espécie de funil usado para projetar sua voz, como nos antigos teatros gregos de Dionísio e Epidauro. E o palhaço continuava (como um verdadeiro corifeu), quase cantando uma música cuja letra era assim:

Palhaço: - Oh! Raio Sol suspende a lua!
Crianças: - (Respondendo) Olha o palhaço no meio da rua!
Palhaço: - Oh! Raio sol suspende a lua!
Crianças: - (Gritando) Olha o palhaço no meio da rua!
Palhaço: - Olha a negra na janela!
Crianças: - Olha a cara dela!
Palhaço: - O que é que ela tem?
Crianças: - Carrapato no sedém!
Palhaço: - Ela tem mais eu não digo!
Crianças: - Carrapato no umbigo!

     Assim, com meninos e meninas lhe acompanhando, o palhaço seguia caminhando com suas pernas disformes, subindo e descendo ladeira, pelas ruas de bairros próximos. Ao voltarmos ao circo, à tardinha, já escurecendo, todas as crianças, inclusive eu, eram carimbadas no braço. A conquista suada desse carimbo significava a nossa entrada no espetáculo da noite.

     Os circos que possuíam animais como leões, leoas e hienas nos davam outra oportunidade para assistir aos espetáculos. O trabalho não era nada mais além do que capturar os coitados dos gatos que viviam perambulando pelo bairro e adjacências, para se transformarem em alimento para os leões. Eu saía à caça dos gatos como verdadeiro “Sherlock Holmes”. Qualquer gato que aparecesse à minha frente seria brutalmente perseguido. Cada gato valia uma entrada para apreciar ao espetáculo da noite. O interessante é que sabendo da notícia, nesse período toda a vizinhança escondia seu “bichano” de estimação para não ser devorado pelos leões do circo.

     Eu também costumava entrar nos circos com ingressos que, por sua vez, não eram comprados, mas recebidos em compensação ao pagamento da indumentária que minha mãe sempre costurava. Por muito tempo minha mãe se tornou a costureira oficial de vários circos. Exímia e respeitada costureira. Ela reformava e transformava roupas; costurava roupas novas e usadas, pregava botões; tinha uma habilidade incrível para cortar e costurar roupas diversas. Esta era uma prática que já vinha acontecendo desde a década de 1960 quando os circos chegavam à cidade de Nova Cruz no Rio Grande do Norte. E por isso ela sempre era requisitada pelos circos que passavam por essas cidades. 

     Em último caso quando o circo não possuía lona horizontal e era chamado de “Deus tomara que não chova”, assistíamos ao espetáculo da cozinha da nossa casa da Avenida dos Ferroviários. Nossa cozinha tinha um plano muito elevado e dava para ver completamente qualquer espetáculo de circo sem lona que se armasse na Rua do Cochila.

     Ali era o meu camarote... Sim! Porque tínhamos ampla visão do interior do circo que lá estava do outro lado da rua. Era da janela da cozinha de onde podíamos assistir ao espetáculo. Recordo-me um dos números em que havia uma bailarina que cantava e dançava... Quando a música parava, ela apontava para os órgãos genitais e dizia: - Que bicho é esse? E o público imediatamente gritava: - É uma barata! E o palhaço ia pra cima dela: - Oi! Pega o chinelo e mata!!. 
 
     A Rua dos Ferroviários era muito movimentada, só nessa rua, no final da década de 1970, havia três Lapinhas, uma no centro e outras duas nas extremidades da rua. A Lapinha é uma dança dramática que não mais existe no lugar. Possui dois cordões: o azul e o encarnado; as pastoras dançam em homenagem ao nascimento de Jesus Cristo. Diferentemente do Pastoril que é profano, a lapinha é uma dança religiosa. Em sua poesia “Boa Noite Paraíba” Zé da Luz cita o “Pastoril da Rubina, a boi de bico afamada”, que sempre se apresentava na antiga rua do carretel, hoje 13 de maio. 

     Outro fato interessante era que na hora do lanche às quinze horas, sempre passava seu Zé do doce. Ele possuía a tática de falar um pregão que ainda hoje soa nos meus ouvidos. Equilibrando na cabeça o tacho de doce e na mão a base e andando suavemente pela rua, vinha gritando seu pregão: - Ooooooooolha o doceeeeeeeeeiro! Oh! Que doce, doce!... E assim saía repetindo várias vezes durante seu dia de trabalho. Quando ele colocava a base de madeira no chão e apoiava nela o tacho de doce, automaticamente a criançada o envolvia num sinuoso semicírculo para prestigiar seus deliciosos doces de côco com ou sem amendoim e de batata.

     Marimbondo era o nome de um amigo de meu pai que tinha duas filhas: Lilôi e Belóca. No dia em que caía tanajura, era com elas que competíamos para ver quem pegava uma quantidade maior de tanajuras. Pegar tanajura era uma excelente brincadeira, tanto para o físico como para o estômago. Havia até uma frase mágica que falávamos para que elas caíssem: - Cai, cai, tanajura, cai, cai! Cai, cai que é tempo de gordura...! Não sei por que, mas correndo e cantando essa frase as tanajuras sempre caíam... Hêêita! Frase mágica!? Tanajura assada era o prato preferido de todos. À noite a rua ficava incensada de formigas assadas no óleo.

     Da Avenida dos Ferroviários para a Rua do Cochila era um pulo. E foi na Rua do Cochila que tive meu primeiro contato com a televisão. Depois do jantar, minha irmã mais velha (Elinete R. Palhano) saía com suas colegas, descia uma ladeira para assistir numa bodega a novela de Janete Clair “Antonio Maria”, pela TV Tupi. Toda a criançada ia junto para ver essa tal de televisão. Ioná Magalhães era uma das atrizes. A frente da bodega ficava abarrotada de gente querendo ver aquele aparelho onde o povo falava e se mexia. Era um televisor “Telefunken”, preto e branco com imagem distorcida e cheia de chuvisco em função da deficiência na transmissão.

     Foi na casa da Avenida dos Ferroviários que vivenciei pela primeira vez uma brincadeira chamada de “cozinhado”. Minha irmã mais velha, Elinete Palhano, se juntava com algumas amigas como Maria Luiza (Lulu), Maria de Fátima (Tita), Maria Bernadete (Beta) e se danavam a cozinhar em pequenas panelas de barro compradas anteriormente na feira de Itabaiana. Eu ficava muito feliz com aquele cozinhado diferente e feito no quintal da casa. O que eu gostava mesmo era do arroz, que ficava vermelhinho pela quantidade excessiva de colorau que as meninas colocavam. Isso era uma novidade para mim. 

     Ademir José de Lima, conhecido por Bibi colecionava muitas revistas e isto também me despertou para a leitura. Disneylândia e Topo Gigio faziam parte da sua coleção. Como eu era curioso peguei a revista Disneylândia e nela concretizei o ato da leitura. Comecei a folheá-la e sem esperar havia lido a estória de Branca de Neve e os Sete Anões. Fiquei muito aflito e maravilhado também.

 (Do livro "Eu e a Rainha - de menino a rapazinho", de Romualdo Palhano)

Um comentário:

  1. Lendo este dois capítulos, me bateu uma tremenda de uma saudade, pois vivenciei tudo isso, passei a melhor parte da minha vida morando exatamente na Rua Pe. Ibiapina e convivendo com as mesmas personagens. A bodega onde a molecada do bairro assistia tv era do SR. Chico Davino. Um abraço à todos conterrâneos.

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