Depois dos cinquenta, já sabe: é a dor que comanda tua vida. A dor que me interrompe os passos agora é artrose no joelho esquerdo. Encalacrado no aparelho de imobilizar a perna, tento andar. Aí a coisa mexe com a coluna, que desequilibra a bacia e a dor se espalha. Incrivelmente desconfortável.
Sem caminhada nem bicicleta, começa a aumentar a barriga e o peso se encarrega de tornar mais insuportável a dor no joelho. La puta que los parió! Um nojo essa vida de inválido, enquanto meu vizinho da direita canta desesperadamente o dia todo no seu karaokê, só largando a cantoria para o vizinho da esquerda comemorar seu aniversário noite a dentro ao som do supra-sumo do lixo forrozeiral e da bosta do falso sertanejo. Três e meia da madrugada, levanto da rede velha. A ilustre família da esquerda encerra a noite festiva enquanto os primeiros pardais descem para bicar os restos de comida no meio da rua.
Fico no escritório, na companhia do cachorro Miruca, do gato Nino e algumas baratas tímidas, escondidas nos desvãos. Os dois bichos são amigos de infância. O gato só anda com o pit-bull, como seres sintonizados na mesma faixa existencial de ondas. Uma gracinha!
Na minha central multimídia, onde funciona a redação do jornal Tribuna do Vale e dos blogs, eu escrevo, edito, comento, elaboro roteiros, redijo poemas bestas, pesquiso assuntos simplórios na internet. A central multimídia é um PC enfadado com impressora e umas pastas de papelão contendo recortes de jornais, papeis velhos, máquina de escrever Olivetti portátil, ventilador, violão, estante, birô, quadro artesanal cafona do Botafogo (sou botafoguense de sair do sério), construído com fios, abajur de mesa, mini-sofá e taça de campeão do meu time Canteiro, agremiação vitoriosa fundada por mim na cidade de Mari, para cujo sucesso vendi um velho Chevette, investido no pagamento de “bicho”, cachaça para jogador ruim e propina para juiz ainda pior.
Passo a ler José Saramago. O peste do português escreve tudo o que eu sempre pensei em escrever, mas tive preguiça. Começando oficialmente o dia, por volta das seis horas, passo em revista as anotações. Tenho várias cadernetas e montes de lápis, além de anotar as tarefas pendentes em pedacinhos de papel. Muitas dessas pendências passam de um ano para o outro, algumas jamais serão executadas. Mania besta essa, de anotar o que preciso fazer. Frustrante, porque algumas de caráter impossível.
“Falar com Percival da Associação para Inclusão Digital”
“Reescrever livro de Manoel Xudu”
“Entrevistar Fábio Rodrigues”
“Bolar plano de mídia para rádios comunitárias”
“Levantar coordenadas da rádio Zumbi”
“Ir ao cartório Toscano de Brito atualizar diretoria, registro ata”
“Procurar para ler ‘Rastro na areia’, de Lourdinha Luna”
“Eliminar por meios técnicos ruídos indesejáveis na fita K-7 da cantoria de Manoel Xudu”
“Criar vinheta do programa “Alô comunidade”
“Finalizar texto do Banquete Final”
“Emoldurar quadro Otto”
“Cobrar livros de Ricardo de Mari”
“Inscrever música no festival do Sesc”
“Ver saldo bancário”
“Editar DVD da gincana”
“Diagramar jornal ‘Olhos abertos”
No meu e-mail, recebo a importante notícia de que Zezinho do Botafogo mexeu os pauzinhos e eliminou o River do Geisel. Essa nota esportiva suplantou a história do Presidente da CBF que brigou com a Rede Globo. É mais importante para o meu leitor do jornal “Olhos abertos”, do Geisel.
Pode parecer desperdício de tempo, mas sou viciado nesse negócio de anotar tudo. Não faço uso da tecnologia, sms, feeds, notepad, essas coisas modernosas. Escrevo em pedacinhos de papel e cadernetas.
Acho assim: quando você escreve uma tarefa no papel, é sinal de que tem mesmo interesse em realizar a coisa anotada. Mesmo que depois de algum tempo, lendo as velhas anotações na agenda, você constate que não teve fôlego suficiente, ou vontade, para fazer o que pensou da vida, deixou pra lá seus sonhos e objetivos mais caros.
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