Minha imersão no mundo dos pedestres, por causa da artrose no joelho que me impede de dirigir, me faz íntimo do universo dos meus semelhantes das ruas e pontos de ônibus. Os tipos humanos despertam meu imaginário. Viajo disputando espaço com a madame da periferia, o jovem quase marginal, a mocinha comerciária, o velhinho aleijado e tantos outros tipos.
Se tem um lado positivo, esse meu incômodo que me devolve às ruas raspa um pouco aquela crosta de indiferença que costuma se criar nas nossas mentalidades de pequenos burgueses motorizados. Os interesses argentários e políticos dos governantes fazem vista grossa ao descaso com que é tratado o usuário de transporte coletivo. No ônibus está lá a placa: Lotação sentado: 53 – Em pé, 19. Creio, porém, que as pessoas não têm quase nenhuma noção dos seus direitos mais elementares, porque se espremem no ônibus com mais de 40 pessoas em pé, achando isso natural.
Quando entro no ônibus com dificuldade, sempre tem alguma alma caridosa para me ceder o lugar. E segue a viagem com aqueles elementos humanos relevantes para a compreensão da mentalidade popular. É poético o modo como vive o povão. Poético, sujo, barulhento e estúpido. No meu canto, procuro amoldar-me ao modo de ser dos meus companheiros de viagem. Dividimos o mesmo espaço do inferno que são essas latas de sardinha ambulantes, moldura desse mundo degradado da pobreza.
Bastou bater os olhos no rapaz ao meu lado no ônibus para ter ideia de sua condição social. Bermuda de surfista de feira, camisa regata ordinária, fitinha no pulso, cabelo cortado na moda moicano com o estilo da barbearia “pela porco”. Na mão, um livro de Fernando Sabino. No coletivo cabe de tudo. Desde o rapaz ex-viciado em drogas que pede esmolas para ajudar a instituição que lhe salvou, até o crente pentecostal que grita que o mundo está perdido e Jesus é a salvação. Perto de mim, o jovem segurando livro de Fernando Sabino.
--- Gosta desse escritor? – Perguntei.
--- Quem?
--- Esse autor do livro que você tem aí.
--- Não! Foi minha tia que botou uma carta dentro, pra eu não perder. Nem sei que livro é esse.
Pronto, lá se foi a ideia da crônica sobre a verdadeira dimensão da leitura na vida de um jovem com cara de usuário do Orkut.
Assim vou assimilando o vivido nos pontos de ônibus e nas viagens. Sujeito com dificuldade íntima de comunicação com o mundo, sigo como observador em renovadas descobertas da alma popular, das distintas formas de sobrevivência desse povo esfolado, brutalizado nesta capital em que escolhi viver. Diante dessas pequenas coisas que descubro é que vejo a misteriosa capacidade de resistência de uma gente sem eira nem beira, mas capaz de ternuras insuspeitas, mesmo quebrando a cara em cada esquina. Invade-me uma sensação de descrença total no sistema. Não só o sistema de transporte coletivo urbano.
Oi Fábio: O transporte coletivo nos trás surpresas maravilhosas.Conto-lhe uma que me marcou e sempre recordo como uma ocorrência ímpar na minha vida. Eu estava no Rio de Janeiro para a posse de Zeamérico na ABL. Um dia antes peguei um coletivo lotado e um senhor pretendeu dar-me seu lugar. Ao vê-lo levantar-se apoiado numa bengala, insisti para que continuasse sentado. Admirei seu gesto porque eu era bem jovem. Não demorou a vagar um espaço a seu lado, onde me acomodei. Eu sou comunicativa e em pouco tempo tinha seu currículo e ele o meu etc. Descemos juntos do ônibus. Ele me esperou até eu apanhar meu vestido na boutique, sentamos num barzinho e tome conversa. Perdemos a hora num papo interessante sobre a Revolução de 1930, na Paraíba relatada, por seu participante, nos principais e nos assessórios. Quando cheguei em casa Reynaldo Almeida apreensivo pensava nas providências para me achar, enquanto eu feliz com a surpresa que faria ao chegar em casa justificando minha demora (não havia ainda celular)diria: Por mais de 3 horas deliciei-me com a narrativa do ex-2º tenente AGILDO BARATA -, um cidadão idoso e com água no joelho, sobre a Revolução de 1930, na Paraíba. Ele estava de plantão no quartel do 22º Batalhão de Caçadores, sediado em João Pessoa, na madrugada fatídica de 4 de outubro daquele ano. (Dizem que foi ele quem alvejou o general Lavanère Wanderley que teve morte instantânea.) Os capítulos subsequentes aconteceram em casa de Zeamérico e com grande platéia, inclusive Alcides Carneiro.
ResponderExcluirPelo meu pecado involuntário recebi o castigo de não andar de coletivo e nem dá bom dia a desconhecido.
Uma boa tarde e até amanhã.
Lourdinha