Se não houvesse o novo tempo, não haveria novo expediente nas repartições públicas. Se não houvesse o segundo expediente, não haveria a raiva no coração do funcionário. Se não houvesse a raiva, não haveria o descaso, a falta de atenção, a preguiça redobrada, o desinteresse em se reciclar, o desrespeito ao usuário. Tudo isso duplicado. Pelo menos, foi o que notei na visita que fiz ao Detran, tentando resolver uma pendência do meu pai, funcionário aposentado de lá.
Muda o governo, mudam os chefes das repartições. Esses querem mostrar serviço e começam por acochar o lombo dos servidores. Lá no Detran, criaram o segundo expediente. Cheguei no primeiro turno, por volta de onze e meia da manhã. Nos setores, fui vendo por dentro daquelas gaiolas envidraçadas um clima assim de comportamento forçado. Todo mundo na frente dos computadores desligados, por causa de uma pane geral do sistema. No canto da sala, um funcionário deixava passar o tempo lendo um livro cujo título é “O futuro da humanidade”. Bastante concentrado na leitura, o cara parecia não ter nenhuma função ali e por isso matava o tempo se ilustrando. Os demais só olhavam de vez em quando pra cara uns dos outros, com caras de malcontentes.
O rapaz da sessão me informou que o problema só poderia ser resolvido por outro funcionário. “Saiu pra almoçar, volta no segundo expediente”, informou. Às duas e dez, regressei à sessão. De passagem, notei que o servidor continuava sua leitura do livro sobre o tempo que há de vir. O único servidor daqueles dez ou doze capaz de resolver minha questão ainda não havia retornado do almoço. O chefe deles lá estava, encastelado na sua salinha, lendo jornal. Resignado, sentei e esperei. Por volta das três da tarde, chega o cara. Sujeito educado, explicou que eu fosse resolver o equívoco que eles mesmos criaram em outro setor, na Previdência.
Enquanto esperava, observei o descontentamento dos servidores do Detran com a nova chefia geral. Chegou um funcionário, entrou na salinha do chefe, passou para o setor de trabalho, puxou uma cadeira e já ia engatando uma prosa com o companheiro que batucava numa máquina de escrever. O chefe saiu da sala e pediu para que o camarada saísse do ambiente. “São ordens”, explicou constrangido. Funcionários não podem mais entrar nas salas dos outros para conversar. O invasor levou uns segundos para perceber o novo tempo como uma sombra nervosa feita de ordens estúpidas violentando os relacionamentos. Depois chegou uma senhora de certa idade, bem comunicativa, saudando todo mundo. Foi logo passando a mão no ferrolho da portinhola que separa o balcão de atendimento do restante da sessão. “Não pode entrar mais”, disse um colega. “Pois eu vou entrar pra falar com meus amigos; com mais de 30 anos de casa, tenho meus privilégios”, disse a funcionária madura. Só que parafusaram a portinhola. Ninguém pode entrar senão pela salinha do chefe, atento às ordens superiores, sentado em sua mesa. “E eu que pensei que já tinha visto tudo neste Detran”, lastimou a funcionária, caindo fora, em busca de outras maneiras de matar o tempo.
Na saída, notei que o servidor continuava concentrado na leitura do livro sobre o futuro da humanidade. Já estava na metade. Ao final do segundo expediente, com certeza daria conta do volume. Fiquei pensando: quantos livros esse funcionário pode ler em um ano de duplos expedientes inúteis? E quantos anos deverão passar até chegar esse novo tempo tão anunciado?
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