Não tem braveza e valentia que não se acabe quando a gente
está sem dinheiro. Nesse mundo do lucro, da vantagem, do valor monetário acima
de tudo, “só se vale pelo que se tem”. “Há o tempo de viver e há o tempo de
morrer”. No meio, há o tempo de se ficar liso. Minha pobreza de aposentado não
me permite grandes manobras de consumo. Meus haveres monetários são mais
contados do que os cobres do filósofo Karl Max, o cara que fundamentou a filosófica
comunista. Em carta ao Engels, ele chora: “Minha mulher está doente com uma
espécie de febre nervosa. Não posso chamar o médico por falta de dinheiro para
os remédios. Há oito dias que alimento minha família unicamente com pão e
babata, e não sei se vou poder comprar pão e batata hoje.”
Não estou nessas privações do pai do comunismo, mas é aquele
queixume de sempre do cara aposentado que não tem outra fonte de renda. Porém,
e sempre há um porém, essa exiguidade de recursos pode acabar de forma muito
frutuosa na probabilidade de eu ser um gênio prestes a construir minha obra
prima. Porque tem a teoria de que os grandes criadores só foram capazes de
conceber sua glória artística porque passaram muitas provações no plano
material. Cervantes só escreveu “Dom Quixote” porque vivia na miséria e depois de
passar anos na cadeia. O indivíduo rico, que não tem preocupações com nada,
nunca terá inspiração. Quem não sofreu no couro a aspereza da vida, não será
jamais eterno no panteão dos capas pretas das artes.
Toda essa conversa pra relatar aqui o pequeno desastre de
hoje pela manhã. Às cinco horas, saio em minha byke para o passeio matinal,
levando no tênis duas notas de dois reais para comprar maçãs no retorno, ao
passar no mercado. Depois de gozar os prazeres de rodar cinco vezes a lagoa,
acumulando dores lombares e espasmos nos joelhos, além de câimbras e dormência
nos países baixos, descubro que perdi os quatro reais. Volto para casa sem a
luz que irradia dos felizes, mais apagado do que a tocha das olimpíadas dos
mofinos, os desgostosos competidores batidos, os derrotados, os prostrados e
exaustos medalhas de latão, os que chegaram por último. Dessas figuras ninguém
fala. Não tem mérito algum a ser reconhecido. Foram apenas escadas para os
vencedores.
Desculpem, estou tergiversando. O que eu quero dizer é que
quando se perde o dinheiro da feira, dá-se uma ligeira conturbação na cabeça
conservadora. A gente fica puto. Irritado e indignado, o sujeito acha que
sempre estará condenado a ser escravo. Todos os sentimentos de decepção vêm à
tona por causa do extravio de quatro irrelevantes reais. E tome filosofia de
boteco rodando na mente do provecto ciclista: os homens são regidos pela lei da
necessidade, e a liberdade não passa de uma ilusão.
Quando você dá aquela
topada na quina do pé da mesa, um palavrão é muito mais eficiente do que
qualquer analgésico. No tocante à perda dos vinténs essenciais, aceitei o acaso
e desejei francamente que o dinheiro seja encontrado por alguém que necessite mais
do que eu. Como a vida é um produto das circunstâncias, fui andando e pensando
que aquela mulher gordinha que caminhava com dificuldade no calçadão topa com
as notas, apanha, na volta para casa joga na milhar do porco, ganha uma boa
bolada, passa a achar o mundo mais aconchegante e equitativo, paga a operação
do marido, compra roupas para o neto, quita a conta da quitanda e abre um largo
sorriso quando eu chego ao consultório do médico. Ela, por acaso, é a
enfermeira responsável pelos procedimentos básicos de uma operação que eu iria
fazer. Graças ao seu estado de espírito, fico achando que a vida seja apenas a
simplicidade das trocas, mesmo involuntárias, de pequenos/grandes dados
aleatórios. E sinto paz. Que não tem preço. Ou pode custar apenas quatro reais
que, sabe-se lá por quais desígnios, seriam investidos na compra de frutas
contaminadas cuja putrefação me levaria à morte.
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