Eu sou um sujeito que
sempre trabalhou com o terceiro setor, um cara da periferia, dos subúrbios e
cidadezinhas quase esquecidas. Já fiz teatro em assentamento da reforma
agrária, em escolinhas públicas de sítio. Montei tenda de babau no sítio Linda
Flor e me inspirei no velho Mestre Ciço pra fazer boi de reis nas quebradas de
Cruz do Espírito Santo, em uma estaçãozinha de trem onde trabalhei. Eu sempre
gostei de me ligar a movimentos espontâneos de periferia, esse universo meio caótico
da cultura popular onde a própria cultura é muito forte, e viva.
Acontecem coisas
incríveis no meio desse povo, mas você precisa de ter grana para trabalhar
qualquer projeto. Mesmo que seja muito criativo, sem dinheiro, sua
inventividade não chega muito longe. Daí, o caminho é o financiamento público,
o que não é muito legal porque você passa a ter que conviver com um bicho
chamado burocracia. Primeiro, você terá que registrar em cartório e jogar na
corrente da imensa burocracia uma organização não governamental sem fins
lucrativos. O cara que transa com linguagens artísticas fica meio doido no meio
da papelada, não tem experiência nem saco pra lidar com as leis, as taxas,
formulários, prestações de contas complicadas, enfim, esse incrível mundo pouco
funcional da burocracia.
Tomemos os Pontos de
Cultura como exemplo. A ideia é magnífica: pegar focos de produção e difusão
cultural nas cidades e injetar recursos para que se possa estruturar a
organização, dando condições e ferramentas para utilização de tecnologia
moderna de comunicação como câmeras, ilhas de edição, serviços de som e
aparelhagens destinadas à atividade mais importante da entidade selecionada em
edital. O problema é quando uma simples associação de bairro, ou escola de
samba, terreiro de candomblé, grupo de teatro ou dança, cineclube ou bloco de
carnaval precisa concorrer a esses editais. A própria seleção é um calvário.
Depois, quando a ONG é reconhecida como Ponto de Cultura, recebe uma grana
inicial para comprar os equipamentos descritos na proposta de trabalho. Sem
dinheiro para pagar um contador, mais de 80% dessas entidades ficam
inadimplentes por causa da imensa dificuldade para lidar com os complexos
mecanismos de prestação de contas.
Nosso trabalho no Ponto
de Cultura Cantiga de Ninar, em Itabaiana, é reconhecido pela população. Na
medida do possível, enfiamos a cara em projetos culturais e educacionais,
apenas com a ajuda de alguns amigos. Ontem, tive a feliz surpresa de receber
mensagem de uma moça que trabalha na Caixa Econômica Federal, dando os parabéns
pelo trabalho desenvolvido e colocando-se à disposição para ajudar. “Sabemos do
trabalho responsável e admirável que vocês desenvolvem no Ponto de Cultura
Cantiga de Ninar e resolvemos colaborar,orientando microempresários da região e
pessoas físicas que têm imposto a pagar, no sentido de destinar recursos para
os projetos sociais e culturais dessa entidade”. Bela e surpreendente
iniciativa dessas pessoas, extremamente pertinente a forma de colaborar. Mas, e
sempre tem um porém, precisamos ser reconhecidos como de Utilidade Pública
Federal, e aí é onde a porquinha torce o rabo. Procurei saber o que é
necessário para isso, e, mal comparando, finalmente descobri o elo perdido
entre civilização e barbárie. Meninos, é tanto papel e são de tal número os
itens de informações inúteis e as exigências que beira o patético e o
dramático.
O Estado joga mesmo
duro com o cidadão, não tem boquinha. Ainda bem que a poesia e a delicadeza do
fazer artístico não se interessa pelos formulários do Leviatã. Vou procurar um
cara antenado na antiarte das formalidades para fazer esse diálogo possível
entre nossa ONG e os ditames do Estado para que nosso trabalho seja reconhecido
de utilidade pública federal. Para mim, é mais relevante que um grupo de jovens
bancários entenda a importância do trabalho do Ponto de Cultura e deseje,
sinceramente, ajudar.