A trajetória
do documentarista Vladimir Carvalho é iluminada pelo crítico de cinema Carlos
Alberto Mattos em "Pedras na lua e pelejas no Planalto". Logo no início, Mattos
descreve como Carvalho foi precursor de dois momentos importantes da
cinematografia brasileira: o Cinema Novo e, após sua mudança para a capital
federal, o florescimento de um cinema tido como legitimamente brasiliense. No
livro, pela própria voz de Carvalho, entende-se como ele procurou equilibrar
suas origens nordestinas com o concreto armado do Distrito Federal em uma
trajetória artística única.
Estou lendo
esse livro que tem 300 páginas, anotando os trechos mais interessantes que
passarei aqui para os meus seis leitores, à medida em que for avançando na
leitura.
CARNAVAL DE
ITABAIANA – “Eu me lembro, e essa é uma das minhas primeiras lembranças, do
carnaval de 1939 que assisti em plongé, do
alto dos ombros do primo Jonjoca. Entre pavor e excitação, vi os primeiros mascarados,
palhaços, um famoso folião que se fantasiava de urso, tudo recendendo a
lança-perfume. O carnaval de Itabaiana, dizia-se, rivalizava com o do Recife.
Do Alto dos Currais, vi o bloco do Zé Pereira saindo na boca da noite, o
volumoso séquito de foliões portando balões coloridos e iluminados. No futuro,
eu haveria de exteriorizar essa forte impressão através de um guache que pintei
e guardo comigo”.
FEIRA DE
ITABAIANA – “Na feira de Itabaiana, chamava minha atenção o simulacro em
miniatura de uma casa de farinha, que era exibida dentro de uma grande caixa,
através de pequenos visores. À medida que o operador girava uma manivela, víamos
os bonecos reproduzirem em detalhes a atividade do cevador, o abastecimento do
forno etc. Era uma espécie de realejo visual, ou arte cinética matuta.”
BUMBA-MEU-BOI
NA BAHIA – “Na boemia fajuta de jovem sem dinheiro, eu perambulava pela Canela,
o Campo Grande, a Vitória, a Baixa do Sapateiro, o Taboão. Conheci Gilberto Gil
estudando Administração de Empresas e cantando nos bares da orla. Frequentei as
festinhas na casa de Gracinha (Gal Costa), os shows de Tom Zé e Caetano na
boate O’Clock, as atividades do CPC baiano, para o qual fui convocado por
Geraldo Sarno para assisti-lo na área de cinema. Numa das ações do CPC, Tom Zé
conduziu um bumba-meu-boi alegórico pela Avenida Sete, até a Praça da Sé,
contando a história da exploração do povo brasileiro.”
O MAÇOM – “Como
se não bastasse tanto ecletismo, meu pai ainda aceitou um convite para entrar
para a Maçonaria. Na sequência, com cerca de 12 anos, fui iniciado como lowton numa cerimônia belíssima, em que
desfilei sob o túnel de espadas erguidas e tomei ritualisticamente o vinho, o
pão, o mel e o sal.”
“Depois da
morte do meu pai, determinado a ajudar no sustento da família, vali-me da
solidariedade maçom para conseguir um emprego de vendedor de estampas de santos
a domicílio. Foi quando desencantei-me com a Maçonaria, pois o velho não
pretendia me ajudar, mas simplesmente ser meu patrão.”
IDEOLOGIA – “Não
posso negar que esse período de estudos e atividades, com o aprofundamento
contínuo dos conceitos disseminados pelo Partido, teve uma enorme importância
na minha formação. Na minha e na de muita gente neste país. Descontados alguns
sectarismos e equívocos, a escola do
Partido – como era chamada no jargão próprio – estruturou-me moralmente
para a vida. A insistência na esperança é um dos traços que dela herdei. Por
isso é que, entre Beckett e Brecht, fico com Brecht. O homem tem saída, sim.”
MEMÓRIA FERROVIÁRIA
DE ITABAIANA – “No Triângulo, um muro de frágeis tijolos aparentes separava
nossa casa de uma vila de moradias mais humildes, numa das quais morava a
família do maquinista Chico Félix, a quem minha mãe costumava presentear com
cestas de gêneros alimentícios. Eu me aproximei de Erasmo, o filho do
maquinista.”
“O trem sempre
foi um elemento marcante na paisagem da minha memória. Não exatamente esses
trenzinhos quase de brinquedo, mas os dragões metálicos e baforentos que faziam
o transporte de gado e gente na ferrovia então arrendada à Great Western
Railway do Brasil.
Itabaiana
ficava a meio caminho entre Campina Grande, João Pessoa e Recife. Na minha
época de garoto, a cidade era margeada, de um lado, pelo rio Paraíba, e de
outro lado pela grande ferrovia. As boiadas trazidas das regiões próximas e do
alto sertão embarcavam nesse trem rumo aos matadouros. À margem da estação
ficava o curral ´para facilitar o embarque. Nosso bairro era chamado Triângulo,
em virtude de uma importante bifurcação ferroviária. As casas da famílias,
separadas por quintais, formavam uma espécie de vila à margem da estrada de
ferro.
O trem
pontuava o cotidiano da cidade. Havia a hora de passar o Bacurau ou o Subúrbio, conforme
os apelidos de cada comboio. Maquinistas silvavam apitos característicos ao
cruzar seus bairros, notificando os familiares e amigos de sua passagem. Quem
precisasse acordar muito cedo guiava-se pelo resfolegar do trem das madrugada,
em sua lenta subida de um aclive à saída de Itabaiana.
Os trilhos
cortavam a cidade e assumiam relevo na sociologia local. Em certo ponto, a
ferrovia separava os bairros familiares da
chamada Mandchúria, a zona do
meretrício. Assim, quando um jovem era iniciado nas aventuras da Rua do
Carretel, dizia-se que o sujeito atravessou
a linha do trem.”