segunda-feira, 30 de março de 2020

Baú do isolamento (5) Prosa poética




Quem vai pagar o pato e quem vai purgar a peita? Quem vai peitar o puto e acordar no ponto? Quem vai sacar o saldo bancário do sacripanta salafrário? Quem vai acordar os insones e os insanos? Quem vai patrocinar as Olimpíadas do Capitão atleta falastrão? Quem vai dominar a imprensa dominante?
Onde se esconde meu futuro que passou? Onde entro em cena se tudo vale a pena se a arma não é pequena? Onde vamos assar nosso galeto longe do aquecimento global? Onde está o cano para onde vamos? Onde está Queiroz? Onde posso achar graça no meio da desgraça? Onde está o resultado do exame do Diabo? Onde injetaram anestesia nesse povo varonil?
O que fazer com os louvadores da ignorância? O que fazer se me colocaram na lata de lixo? O que digo das formas não normativas do rádio lixo? O que é isso companheiro? O que dizer aos anormais urbanos e rurais? O que se passa por trás da vidraça do homem de caráter sem jaça? O que comer além de bolacha sintética e agentes infecciosos internacionais? O que fazer para testar o testa de ferro com testosterona?
Como desmontar a bomba do poder sem lastro?  Como não repetecar a crise de 74 sem juros altos e moral baixa? Como obrigar o Presidente a presidir? Como faço para rasgar o protocolo e mijar no protozoário? Como entrar na mente do microrganismo e converte-lo para a Igreja Brasileira Universal? Como comes? Como como? Como como como.
Cadê o homem só e solitário em sua escravidão disfarçada? Cadê a lanterna de Diógenes que se apagou ao vento leste? Cadê a lágrima de felicidade de mãe? Cadê Tereza? Cadê Nero de Roma que não vem tacar fogo em Bolsonaro? Cadê os olhos compreensivos da morte puxando pela gola os vis mortais? Cadê o circo dos horrores das quebradas coronaviradas? Cadê o pop star que jamais esteve? Cadê a opulência do mundo espetacular que desengrenou? Cadê o palco colorido encobrindo a desordem do mundo real? Cadê o banqueiro espertalhão que se fodeu no corona? Cadê os milhares de seres humanos na barca do purgatório clamando por álcool gel? Cadê a barca do Paraíso com o papa Chico remando com um remo só?

Baú do isolamento (4)



Horta de sonhos freudianos

Hoje são trinta de março, dia de Eostre, Deusa da fertilidade e do renascimento na mitologia nórdica. Amanheci regando uma hortazinha de pé de muro no meu quintal árido, coberto de cimento. Mais um dia que começa a gente correndo desembestado atrás do fim dessa quarentena, sem sair do lugar. Longos dias de quietude e marasmo. E inquietude.

Um beija-flor apareceu e amou a viçosa flor do maracujá por exatos três segundos. O bastante para ele abastecer-se de néctar e atingir níveis de felicidade que só quem se agitou nesses radiantes momentos infinitesimais de bem-aventurança pode avaliar. Esses bichinhos acho que conseguem oscular a menina dos olhos de Deus. Amanheci tentando me sentir lírico para afastar o ácido desses dias corrosivos.

Amanheci assistindo “O poço”, um filme de terror, metáfora supra violenta sobre a sociedade de classes e a solidariedade. Recomendo, principalmente nesses momentos em que precisamos pensar nos outros, nos que nada têm e estão expostos ao coronavírus. Apesar das crueldades de gente como esse Capitão e seus colegas de classe, ainda vigora o desejo de continuar dançando à beira do abismo do poço, com a confiança e a fantasia de que a mensagem chegará ao primeiro piso.

No mais, é manter a estabilidade emocional com leitura, música, arte e exercícios físicos, conforme ensina o professor Ivaldo Gomes, ressaltando que essas disciplinas curriculares são as menos valorizadas na escola e que aparecem agora como a melhor forma de suportar a quarentena.

O sábio chinês Chuang-tsé sonhou que era uma borboleta e, ao acordar, se perguntou se ele mesmo não seria um sonho da borboleta. Entenderam? Eu também não, mas pressuponho que seja algo ligado à nossa fragilidade enquanto seres humanos e o desejo sutil de viver outras realidades. Eu queria ser aquele beija-flor que beijou a flor do maracujá.


domingo, 29 de março de 2020

MULTIMISTURA - 29/03/2020




MULTIMISTURA faz gambiarra e produz mais um pod cast. Melhor escutar com o fone de ouvido. O zumbido é o mosquito do corona.



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Baú do isolamento (3)




Cada um no seu hospício


Em guerra aberta conta o COVID-19, a cidade se equilibra à beira do abismo e de vez em quando fica abismada quando a elite bota a cara feia de fora e desfila pelas ruas nos seus carrões, pedindo que os trabalhadores voltem no momento em que estamos vivendo e quase morrendo uma pandemia. Foi ontem aqui em João Pessoa e em outras cidades no Brasil. É assim que as coisas são no mundo da burguesia predadora. Zero de empatia com os de baixo.

* *  *

Um dia uma moça de Mari me encontrou na rodoviária e perguntou:

-- Oi, tudo bem, Mozart?

-- Ta não.

Ela me olhou com cara de melindrada e nunca mais falou comigo. Não sei o que pensou na hora, já que esperava uma resposta padrão tipo: “tudo bem, e você?” Só que não estava tudo bem e naquele dia justamente eu não me sentia disposto a mentir, só isso. Ontem eu fingi, não nego. Um amigo ligou. “Tudo bem?” E eu: “Melhorando. Estou adquirindo novos hábitos, fazendo exercícios, escrevendo mais, valorizando os afazeres habituais, sublinhando os afetos”. Fantasiei só um pouco.


* *  *

Fiz um minucioso trabalho de pesquisa online sobre crônicas da pandemia. Nesse mundo das redes sociais, você não viveu se não tiver uma plateia. Cada um fala do seu cotidiano e tem prazer de mostrar aos outros como é o mundo de seu ponto de vista. Inclusive eu. Diariamente a imprensa divulga os indicadores da epidemia. Tendência da evolução, casos confirmados e tudo o mais. Entretanto, é nas narrativas dos blogueiros onde se analisa o avanço da desagregação social e psíquica das pessoas em seus esconderijos.

Conforme meus estudos, a economia está muito desaquecida e o amedrontamento cresce de forma consistente, a um ritmo de 30% de fobia diária. Aqui estamos consumindo duas barras de sabão cotidianamente. Cancelei a assinatura do jornal, temendo que o vírus cole no papel e aborde minha nau vulnerável.  


* *  *

Meu grupo de amigos da Rádio Zumbi parece preocupado com o círculo maior da solidão e tenta reestabelecer os sinais para prosseguir as produções de rádio web, mesmo precariamente, via internet. Quase todo dia geramos pod cast onde a gente ri e tira onda uns com os outros. Zombarias nervosas como se a risibilidade avançasse contra a força da gravidade de um planeta estranho, ou contra o impulso de uma torrente descomunal. Tudo para recuperar o ânimo.


* *  *

E eu vendo de perto a fragilidade do corpo e da mente humana. Convivendo com uma criatura alucinada com a presença de um micro-organismo num aperto de mão, uma tosse. Pânico inconcebível para quem está do lado de fora. Projete o desespero de um homem que se debate para se ver livre de fortes garras que apertam sua garganta, mesmo não havendo dedo algum em torno do seu pescoço.
Cada um ao seu modo vive e morre nos seus manicômios particulares e impenetráveis. Essas estatísticas não saem nos boletins da pandemia.




sábado, 28 de março de 2020

Baú do isolamento (2)



Na peça Rei Lear, Shakespeare conta que os conselheiros da Corte procuraram o monarca, desesperados: “Majestade, vai acontecer uma catástrofe! Nossos astrólogos estão prevendo a colisão de um cometa imenso com a terra”. O velho e experimentado rei pedra de gelo estava pedra de gelo ficou. “Peço que vocês não me perturbem com eventos sobre os quais não tenho nenhum controle”. Dizem que o dramaturgo inglês escreveu a peça durante seu isolamento da peste bubônica no verão de 1606. A peste matou 10% da população de Londres.

Pensei nisso aqui no meu isolamento, decidindo por ouvir o mínimo possível de notícias do exterior. Outra abstração: como essa pandemia mudará a vida de cada um? Sentir-se íntimo da morte provoca obsessões em pessoas fragilizadas mentalmente. Outras se apegam na realidade substancial do espírito. Meu vizinho ouve missa e reza dia e noite. E depois? Como ficará a cabeça de quem vê o corpo do seu semelhante como terror e perigo de contaminação? A ideia de igualdade, será que sai fortalecida?

Para relaxar, escuto velhas canções de minha geração. Tenho vontade de desenhar, rabiscar umas figuras. Lembro de alguém que é artista e vive limitando seu talento, sem querer produzir. Poucos dias de isolamento, já se tem ideia do estrago que o coronavírus vai causar no plano psicológico. Até a medicina anda brincando de cabra cega com o vírus. Por arte do azar, o Chefe da nação mal conhece seus limites funcionais e pede ao povo que forneça carne fresca para os agentes infecciosos.

Minha rua fica de frente a uma pracinha chamada João XXIII, na comunidade Jardim Glória. Ontem, crianças brincavam na praça, vigiados de perto por um senhor. Veio-me à mente um grupo de filhotes e o macho cuidando da cria na floresta repleta de predadores, sob as ordens da fêmea alfa. O citadino cuidador confiando no seu sistema imunológico para espantar o vírus e, por tabela, defender seus descendentes.

Tem uma técnica de natação onde a pessoa flutua passivamente, fazendo-se de morto. Sem pânico, sem medo. Não temos a quem reclamar. Apenas suspendemos o fluxo da vida cotidiana e deixamos de fazer as porcarias comuns: poluir e matar. Um milhão de espécies animais e vegetais estão para ser extintos por obra e graça dos seres humanos. Ecossistemas e populações desaparecem a uma velocidade nunca vista. O planeta dá o troco.

Praça João XXIII



quinta-feira, 26 de março de 2020

MULTIMISTURA DO CORONAVÍRUS - 26 de março de 2020


Neste período de pandemia, programação do MULTIMISTURA está mantida. Não há risco de aglomeração de ouvintes. Audiência zero. 


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Baú do isolamento (1)




Jamais na história dos povos isolados se viu tanta aflição como a do elemento que acorda pela manhã e corre para a torneira, conferir se tem água. Medo de que a água não apareça e confirme seu temor de que a civilização acabou. Outro refrigério é o barulho do motor do caminhão do lixo nas madrugadas e o ruído de um jornal atirado no jardim. Sentimento de insegurança e vulnerabilidade. Inquietação que vai aumentando durante o dia, no transcorrer dos noticiários das crises sanitária, econômica, social e política derivadas dessa doença. No manual de vigilância e controle do vírus não consta remoção de um vetor poderoso, o próprio cara que deveria comandar o combate à mazela. Briga desigual, tipo meu Auto Esporte jogar contra o Barcelona com menos três e o goleiro míope.

Na maré da instabilidade, os povos isolados e espertos já perceberam a chegada de um aliado impensado: o poderosíssimo grupo de comunicação da família Marinho. Eles devem ter seus motivos para abandonar o barco desastroso do capitão Caverna, incentivos bem menos nobres do que se pode imaginar. Na TV principalmente, sangram o aprendiz de ditador sem piedade, aos poucos, programando cuidadosamente os picos de interesse do grande público, a estratégia de editar as falas e o fluxo das notícias. Têm longa prática e vivência nesse tipo de fuzilamento midiático, desde João Goulart. O capitão Caverna fia-se na estupidez do seu rebanho e sonha com o golpe.

Enquanto isso, o elemento zanza pela casa, arrastando sua perna reumática e sua ansiedade, sentindo-se alvo. Sabe aquele desconforto de estar na mira do tiro? É que sou do time de risco, a galera que tem o sistema imunológico envelhecido. Eu imagino os fungos e vírus tomando conta do meu corpo, crescendo e prosperando nesse ambiente agradável, quente e rico em nutrientes. Penso essas coisas mórbidas porque estou só, vivendo uma ficção futurista catastrófica em filme B, fazendo figuração de alto perigo.

Pego aleatoriamente um livro de poemas na minha biblioteca. Pádua Fernandes, um cara cujo trabalho eu não conhecia. Inconformismo e fé, ao mesmo tempo e paradoxalmente. Na primeira página já vai largando a mão na cara:

Não restam mais dentes
não importa
ainda pode cuspir
na roda morta.

Poema evocando outro, do “maldito” Sérgio Sampaio, autor de “Roda morta”, a marca dos tempos atuais de podridão moral, cívica e física. Vou no Youtube e escuto Sampaio deplorar as hordas de demônios, “com os dentes cariados da alegria, com o desgosto e agonia da manada dos normais e a sordidez dos conteúdos desses dias maquinais”.


Enquanto isso, passo as noites ouvindo os cupins laborando, sem se importarem com a crise estrutural do capitalismo. No breu da noite, eles me dão lição de movimento social coletivo. Evoquei um velho ditado de Portugal: a idade não faz corajosos nem sábios, faz velhos. Dito isso, fui dormir minhas três horas de modorra agoniada.


segunda-feira, 23 de março de 2020

Ave Maria no meio da instabilidade emocional



Arnaud do Sax é daqueles sujeitos com música em seu código genético. Desde menino, já impactava o meio ambiente com o som do violão, flauta, trompete, teclados e sax. Vivendo no país mais musical do planeta, na região mais representativa das matrizes sonoras étnicas, foi construindo a sonância em harmonia com os cantos, danças, ritmo e cadência da mistura cultural. Acabou músico da noite e instrumentista de banda filarmônica, seu ganha pão. Toca em boates, bares, shoppings e recepções. É saxofonista da Banda Santa Cecília, de Sapé, uma das mais antigas do Brasil.
A crise da pandemia pegou Arnaud do Sax e rasgou sua agenda. Não tem mais como pagar suas contas. Ele, igual a todos os trabalhadores brasileiros informais, jamais será ressarcido. Paga o preço desse fenômeno sanitário e, de quebra, da incompetência e mau-caratismo dos comandos nacionais. Em 2012, a Câmara Federal rejeitou projeto que concedia seguro-desemprego a artistas, músicos e técnicos em espetáculos de diversões.
O músico abandonou seu instrumento diante do desconsolo e aflição da hora. A crise do capitalismo juntou-se ao vírus e à desordem institucional bolsonarista. O grande cérebro coletivo brasileiro deu um nó.  Velhos e novos, empresários e operários, artistas e trabalhadores informais não conseguem ver nem a ponta do iceberg, mas já se mortificam com a certeza do desastre iminente.
O que fazer? Em isolamento, as pessoas reagem fincando bandeira em terreno descampado da desesperança ou vislumbrando um mundo prenhe de outro mundo que está para sair dessa instabilidade mundial. Na Itália, as pessoas se postam nas janelas e cantam canções de crença e sonho. No seu condomínio, toda tardezinha Arnaud do Sax põe uma caixa de som na janela do apartamento e toca a Ave Maria de Gounod. No primeiro dia recebeu 300 mensagens dos vizinhos no Instagram. A última audição contou com um público oculto de mais de mil residentes no condomínio, a julgar pelos comunicados elogiosos. “Redescobrimos a fé e a alegria de viver”, enunciou um casal de idosos. “Aceita cachê? Informe o número da conta”, disponibilizou outro. O próprio músico se diz amparado pela ação artística e humanitária. “Expulsa minha inquietude e consternação do peito”, assegura.
“O Brasil não é um país sério”, teria dito o presidente francês Charles De Gaulle. É lenda. A sentença foi realmente dita por um embaixador brasileiro na França. Atualmente, os embaixadores das nações do mundo nos olham e ponderam: “o Brasil não é um país sadio”. Nossa elite é insalubre. Entretanto, que povo maravilhoso escolheram para povoar este hospício! Pelo menos os nossos artistas conseguem proteger nosso conceito com sons, cenas, movimentos, imagens e cores da cultura brasileira e emocionando com o show perenal da solidariedade e a beleza do humanitarismo.

Valeu, Marcelo Piancó! – Em 2015, fiz entrevista com o humorista Marcelo Piancó, uma das melhores do meu programa “Alô comunidade” na Rádio Tabajara da Paraíba. Conversa prazerosa onde ele falou de humor, poesia, ativismo político e militância social. Voltei a ouvir a gravação da entrevista no Youtube neste domingo (22), quando soube de sua morte. Além de ter sido um dos maiores comediantes da Paraíba, Marcelo Piancó era mestre do soneto. Sempre insistia com ele para publicar seu trabalho de alto valor literário. Marcelo era igual a mim, um protelador. Nos dramas clássicos, o herói habitual acaba tragicamente. Marcelo viveu construindo o riso e morreu com a dignidade de um Carlitos.



sábado, 21 de março de 2020

A quarentena e o pé de imbaúba



“Isolamento é uma situação que pode convocar os nossos fantasmas para a gente bater um papo com eles e resolver assuntos pendentes.” - [Sigmund Freud (1856-1939), médico psiquiatra austríaco criador da psicanálise].


Imbaúba é uma planta que serve para fazer chá para hipertensos e é a comida do bicho-preguiça. A plantinha nasceu no pé do muro no fundo do quintal e só percebi depois do segundo dia de isolamento. Dá-se um nome para essas plantas que nascem nos locais mais improváveis, porque a natureza insiste em sobreviver, vide o vírus da moda. São chamadas de inço. Como tenho o hábito de deturpar informações, igual a todo jornalista, atribuo o brotar dessa semente de imbaúba ao pássaro emissário do deus grego Quelone, representante da indolência. O passarinho defecou a semente no meu quintal cimentado e eis a imbaúba vicejando para me lembrar que a ociosidade forçada pode ser produtiva e um exercício de autocrítica, reflexão, aprofundamento nas coisas aparentemente banais e estudos correlatos. Estou na fase de inclinação para essas pequenas descobertas nos monturos e fundos de gaveta. Tentando desconsiderar um pouco as opiniões tantãs, prejulgamentos, afirmações preconceituosas, interpretações dúbias, invasão da intimidade e outras idiotices cruéis das redes sociais.

Estou tentando organizar um quarto sobrecarregado de livros, pastas, entulhos em geral. Consultores garantem: esses ambientes atraem energia estagnada. Pilhas de papéis antigos que vão ao teto. Se o isolamento espichar até setembro, como ameaçam as autoridades sanitárias, talvez termine a tarefa.

Na net tem um monte de kit faça-você-mesmo para organizar arquivos mortos. Falando em mortos, comunico que passei a usar o melhor da televisão, que é o botão de desligar como dizia Stanislaw Ponte Preta. O meu vizinho pirado passa o dia todo ligado, ouvindo missa na TV e rezando. Ele garante que tem o escudo de Deus para proteger do vírus, mas não se garante pra sair de casa um palmo. Quase que me vejo assim numa espécie de reality show macabro. Ninguém quer ser eliminado. Tutoriais ensinam a sobreviver na guerra contra o vírus. Evitar riscos previsíveis. O melhor lugar pra se esconder é dentro de si mesmo e reinventar situações cotidianas, desrotinizar a rotina.

Voltando à imbaúba, a plantinha me faz revisitar o absurdo de nossa realidade. Ela não tem chance alguma de prosperar naquele ambiente, mas seu dever moral e cívico e patético natural é germinar, botar a cara ao sol e esperar seu predador, o bicho-preguiça que jamais virá. Fantástica a passeata de jovens zombando do coronavírus numa cidadezinha brasileira. Vi no Facebook. Com direito a carro de som e apoio de professores. Parece que se trata de uma manifestação a favor de Bolsonaro que garantiu não ter medo de “uma gripezinha”. Olhos, narizes, bocas, risos fazendo a cena da insustentável leveza da imbecilidade. A imbaúba e o grupo de jovens bolsonaristas têm um elo em comum: vivem situação limite e inexplicável para eles mas não têm angústia nenhuma porque lhes falta consciência do real. Me vem à cabeça uma piada antiga da sessão de achados e perdidos onde toda manhã a funcionária pergunta aos gritos para um grupo de pessoas: "quem perdeu um cérebro?”. Segue-se, então, um eloquente silêncio.








quarta-feira, 18 de março de 2020

Novo cordelista na praça anuncia que o cordel está vivo



Quem inventou a bobagem de que o cordel é uma arte em extinção precisa saber que novos leitores e escritores de cordel estão surgindo no Brasil. Aqui na Paraíba do Norte, um pouco pela dedicação da Academia de Cordel do Vale do Paraíba, esse patrimônio cultural brasileiro empolga e envolve cada vez mais a galera jovem.  Quando surgiu o rádio, disseram que ele iria substituir o cordel. Sobreviveu. A TV quase mata o rádio e o cordel. Os dois resistiram.  Agora com a internet, os cordelistas pegam carona nessa calda de cometa e voam pelo mundo levando esse gênero literário nordestino, servindo até como ferramenta da educação.  

O cordel mudou, é verdade. Pela sua origem popular, há preconceito. Hoje tem doutor de tudo que é jeito escrevendo cordel. E lendo, e pesquisando.  Definitivamente, cordel não é literatura menor. E não é fácil, como pode parecer. Tem que estudar as regras, tem que ter cabeça de músico, ritmo e coração de poeta. Precisa escrever no embalo das sílabas poéticas sem perder o sentido da oração e sendo inventivo nas narrativas.

Igor Gregório é um poeta muchacho, novato nas lides cordelescas e empenhado no aprimoramento de sua escrita nessa expressão popular. Com simplicidade e desafetação, ele chega perto dos mestres e vai assimilando as técnicas e os traquejos do ofício. Já escreveu sete folhetos, dois deles em fase de produção na gráfica. Serão seus primeiros títulos no mundo dos folhetos.

O poeta noviço teve a delicadeza e humildade de me visitar e pedir meu ponto de vista sobre seu trabalho. São dois folhetos de gracejo, cheios daquele humor simples e quase ingênuo do cordel tradicional. Sinal de que Igor Gregório já leu muitos folhetos antes de se atrever a escrever o seu. Fraquejando aqui e ali na estrutura básica do cordel, o que é natural em todo principiante. Entretanto, se continuar levando a sério a arte de poetar, construirá uma obra interessante. 

Apurando sua dicção e calibrando os efeitos poéticos, em conluio com as escritoras e escritores da Academia de Cordel, tenho a secreta suspeita de que Igor Gregório será um trovador de referência.

Cordel tem essa vantagem: é pequeno, oito páginas, de fácil leitura. Dizem as línguas corrosivas que os cordelistas são mais descomplicados para engolir porque a imperfeição é mais fácil de tolerar em doses pequenas. Seja como for, meus cumprimentos ao jovem cordelista Igor Gregório, deixando aqui uma lição de sextilha do poeta Ismael Gaião:

SEXTILHAS SEM PÉ QUEBRADO

Para uma estrofe em sextilha
Ficar bem metrificada,
Basta colocar seis versos,
Com sete sílabas em cada,
E observar suas rimas
Para vê-la bem formada.
Ela pode ser armada
Sem perder o seu contexto,
Porque tem a oração
Pra dar beleza a seu texto,
Com versos mantendo a rima
No segundo, quarto e sexto.
Sendo assim não há pretexto
Pra se fazer verso errado,
Basta treinar um pouquinho
Pra ficar acostumado
E deixar os seus poemas
Sem verso de “pé quebrado”.
Pra ficar mais arrumado,
Seguindo as normas acima,
Podemos usar a “deixa”,
Feita na última rima,
Pra fazer do seu poema
Tentativa de obra-prima.


MULTI MISTURA - 17 de março de 2020


O melhor lugar para se esconder do vírus é no MULTIMISTURA onde não aparece ninguém. Audiência zero.

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segunda-feira, 16 de março de 2020

Aquele abraço!





É necessário reafirmar a ética e o amor. Inadvertidamente ou não, o médico Drauzio Varela abraçou uma pessoa encarcerada, autora de crimes hediondos. A matilha sentiu necessidade desvairada de trucidar o médico com seus dentes impostores. Apologistas do ódio, tendência em alta.

No outro dia, compadre meu transitando com sua bicicleta Monark Barra Circular, desviou do ônibus Geisel Circular e foi esbarrar no carro da madame. Quebrou um pedal, furou o pneu do carro e sofreu ligeiras escoriações, como se diz nos boletins policiais. A motorista, aflita, desceu para prestar socorro. “Desculpe, senhor! A culpa foi minha. Eu com a cabeça quente, acabo de brigar com meu marido, não vi sua bicicleta”. Ofereceu-se para levar o padecente ao hospital, disponibilizou algum numerário para despesas médicas e pediu para rezar o joelho do meu compadre. O velho e chato ciclista esqueceu o padecimento e, conforme testemunhas, permitiu que a madame entoasse uma estranha oração oriental. “Não era da galera do Alá, porque a moça não orou voltada para Meca”, observou o compadre, que é desses tipos conhecedores de todas as ciências humanas, incluindo as preces.

Ao fim, a moça pediu para dar um abraço na vítima. O mau humor do padecente desapareceu no abraço energizado da madame. “Rapaz, eu senti um vigor moral, foi o melhor abraço que alguém me deu!”, revelou o ciclista macróbio e malcriado. Ele foi embora, olhando para trás e mancando, contemplando com um devoto olhar aquela senhora tão simpática e deferente. Seu escudo de ceticismo na humanidade do gênero humano derretendo ao sol da compaixão. Recusou o dinheiro. “Seu abraço foi minha indenização”, confessou, ao ser interrogado pelos outros compadres.

Qual a diferença entre abraçar um criminoso e apertar ao peito outro ser humano carente, prostrado e tensionado? Esquerda e direita são lugares relativos da política. Nesse caso, diante do rancor e hostilidade dos anti abraços, os favoráveis aos amplexos gerais e irrestritos são de esquerda. Por isso se diz “amigos que ficam do lado esquerdo do peito”. 


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Editorial da revista FOLHETO


Tenho 65 anos e aos sessenta fundei a Academia de Cordel do Vale do Paraíba, em Itabaiana. Antes, havia fundado três jornais, três rádios comunitárias, um time e uma liga de futebol, uma associação de bairro, duas entidades culturais e dois grupos de teatro em três cidades: Itabaiana, João Pessoa e Mari. Sou um cabra fundador. Faltou competência e criatividade para construir mais, além de money. Também incorri em muitos erros e desregramentos. Faz parte.

Mas, enfim, eu quero dizer que a Academia de Cordel do Vale do Paraíba chegou aos cinco anos nesta nação de alta mortalidade cultural. Sinal de que está vingando, apesar desse “instante anacrônico”. Cinco anos e já estamos em crise de meia-idade. Mas, isso fica para discutir em outra ocasião. Agora, lembrar apenas a parceria com os poetas Sander Lee e Thiago Alves na construção da academia, e agradecer aos quarenta confrades e confreiras por manter viva esta ideia, não obstante o cenário da cultura no país hoje, onde os ditos gestores costumam pensar que artista é uma planta que se deve tratar com cuidado para que não dê frutos.

Florescemos e esta revista é um fruto maturado e ousado, num país cada vez mais ágrafo. Nesta edição inaugural, fomos à Rússia entrevistar o poeta repentista intelectivo Astir Basílio. De quebra, trazemos Lau Siqueira, um gaúcho paraibano entendedor de poesia e outras invenções do pensamento. Por fim, reconhecer a dedicação e entusiasmo de Stelo Queiroga, Manoel Belisario, Marconi Araújo, Thiago Alves, Bento Júnior e Raniery Abrantes. Sobreviveremos, apesar do “momento acidente”.







sábado, 14 de março de 2020

POEMA DO DOMINGO




Tempo de se isolar(?)

Aqui tudo se transmite
Tudo se torna viral
Não sentir que se é mortal
Vida já não se permite
Abraçar, beijar: hesite!
Tudo isso é perigoso
Amar é algo arriscoso
Corações beligerantes
Mãos que caem apedrejantes
O afago se pôs saudoso.

É corona, é preconceito
Dramas que são atuais
Doenças que são reais
Um ar que falta no peito
Há doença, há desrespeito
Há um enorme sofrimento
Talvez o isolamento
Nos dê tal percepção
De que é ruim a solidão
Juntos somos sentimento.

Cristine Nobre Leite

domingo, 1 de março de 2020

Forró raiz e cidadania na periferia



Como é que a escola dos pobres mantida pelo governo da burguesia poderia ensinar crianças a se tornarem cidadãos livres e conscientes? A inquirição me foi feita há muitos anos por um professor “extremista”. Essa questão crucial ainda incomoda professores comprometidos em quebrar os anéis da imbecilidade e pensamentos retrógrados no ambiente da escola pública. Quase todos os que ponderam sobre isso avaliam que a única saída seria uma revolução, que jamais será feita. Os que baseiam seu trabalho de mestres em princípios pessoais de honestidade intelectual e fraternidade, fazem sua parte. Não interessa se a escola reconhece, ou o prefeito aprova, ou mesmo que seus colegas legitimem e reproduzam seu trabalho. Vão lá e tiram do próprio salário magro a grana para bancar projetos culturais para crianças maltrapilhas, famélicas, abandonadas pelo Estado e esculhambadas. É impossível a democracia em um país assim, mas é possível que um humilde professor pegue seu lugar e caminhe dentro daquele processo histórico que move a humanidade, chamado luta de classes.
No dia 29 de fevereiro eu entrevistei o professor Francisco Diniz na Rádio Tabajara, no programa “Alô comunidade”. Ele é da área de educação física, mas trabalha também com formação cidadã através da escrita, leitura e da música. É autor e coordenador do projeto “Pé de serra”, onde ensina crianças de 10 a 14 anos a tocar sanfona, violão, pandeiro, zabumba e outros instrumentos. No balanço do forró raiz, ele acaba também produzindo folhetos de cordel, modulando a cabeça dos garotos na sintonia da consciência social. “O povo desinformado dá no que deu: elegem Jair Bolsonaro”, certifica o mestre.
Meu Brasil brasileiro está cheio de pessoas assim, generosas, desinteressadas em bens ou reconhecimento, dedicadas a arranjar seja onde for algum nutriente cultural para mentes em formação. A proteína e sais minerais que Francisco Diniz oferece é a cultura regional nordestina e paraibana, tão menosprezada nesses tempos onde a mundialização do capitalismo lesiona mortalmente as sociedades do terceiro mundo e suas tradições.
Indiquei o nome do poeta e professor Francisco Diniz para receber diploma de honra ao mérito cultural da Academia de Cordel do Vale do Paraíba. Faço questão de homenagear pessoas assim, até por conexão com minhas experiências pessoais nessa área. Fui voluntário em muitos projetos culturais e sociais em Itabaiana e Mari, cidades onde morei. Francisco levará para receber o agraciamento seus alunos da Escola Paulo Jorge Rodrigues de Lima e Emília Moraes Neta em Lerolândia, comunidade desvalida no município de Santa Rita. Gabriel, Eugênio, Cauã, Alessandro e os demais meninos do projeto “Pé de serra” prestarão tributo ao professor poeta da cidadania e elevarão a auto estima com os aplausos na batida da zabumba e no chiado da sanfona mirim.
Sobre cultura em Santa Rita, lembro sempre de um episódio engraçado e grotesco ao mesmo tempo. O prefeito do lugar, (por sinal, morto recentemente), foi apresentado ao vigilante:
--- Doutor, este é o vigilante fulano, um artista. Ele faz cinema, merece ser melhor aproveitado na Prefeitura.
E o prefeito:
--- Ele é ator principal? Se não é, não vale nada!
Os meninos de Francisco serão atores principais em um sarau artístico da burguesia. Pelo menos nessa noite serão respeitados e aplaudidos, a despeito da discriminação social. O jornal conservador Estado de São Paulo publicou editorial em 1956 dizendo que “ser pobre é um problema endocrinológico; as glândulas não funcionam bem no sujeito, ele vira comunista”.