terça-feira, 20 de setembro de 2022

Boneco de lata e bonecas de ódio

 

Merlânio Maia 

É com enorme insatisfação que apresento a crônica do paciente em sala de espera da proctologista. Estou agora pensando nesta crônica que escreverei mais tarde. A sala é pequena, a TV de plasma é grande, ligada na Globo. O relógio marca pontuais noventa minutos de espera do paciente impaciente (perdão pelo jogo de palavras chinfrim). Por associação de ideias, lembrei-me do caso do paciente perturbado na sala do psiquiatra. Muito tempo esperando na recepção, sentiu-se rejeitado e tentou pular pela janela. A propósito, nesta sala não temos janelas.

Na salinha, sou o único homem a usar máscara. Na verdade, uma figura inusitada, elemento do sexo masculino manchando de azul o grupo cor de rosa, conforme a ideia sexista. Além de minha encabulada pessoa, aguardam a médica cinco mulheres chatas e um pirralho igualmente sacal, além da atendente. Como já informei, estou em consultório de médica proctologista, indicada por um amigo. Altamente recomendada. Suspeitava que ficaria deslocado no ambiente, mas não tanto como me sinto agora. Único homem, somente eu usando máscara e lendo um livro. E sem prestar atenção na TV e na tagarelice das mulheres presentes. Não que o falatório passasse despercebido. Tentava me concentrar no livro infanto-juvenil que trouxe, só pelo formato pequeno que cabe no meu saquinho de conveniências.

As madames mais comunicativas foram construindo amizades, troca de receitas, telefones e impressões comuns sobre o mundo delas e o submundo alheio. Uma senhora de saia jeans, coque e jeito de evangélica logo se entendeu com a professora de sotaque sulista. E haja receita para curar resfriado, dor nas costas e perigo comunista. A provável irmã aproveitou a inserção de propaganda política na TV para destilar um tiquinho de ignorância e preconceito: “Esses juízes ganham tão bem e acabam recebendo propina para liberar candidaturas de ladrões”. A professora lamentou, todas ajudaram a rolar as cabeças dos políticos “desonestos e desencaminhadores de crianças, enviados do capiroto”. A mestra garantiu que a tal ideologia de gênero rola mesmo nas escolas. “Quando Deus fez meninos e meninas, Ele sabia o que estava fazendo. Daí veio o Diabo e criou a ideologia de gênero”, explicou. Uma senhora lamentou que o povo não reconhecesse os bons políticos e “só vota em ladrão”. Lembrou o ex-deputado Toinho do Sopão, “homem tão caridoso, mas só teve um mandato”.

Foi quando aconteceu o inusitado. Do nada, uma senhora fez o apelo: “Alguém tem dez reais para minha passagem? Esqueci a carteira em casa, moro na praia e meu filho não pode trazer agora”. Instaurou-se aquele silêncio opressivo. Passados uns trinta segundos de puro constrangimento, a mulher ao meu lado catou sete reais na bolsa. “Só tenho isso em dinheiro, serve?” Servia. “Me dê seu pix”. “Não precisa, não tenho pix, dê uma oferta pra igreja”. Alívio! As demais madames voltaram a peneirar arroz, temperar a carne e ajeitar o bife. E me ignorar solenemente. Que diacho esse senhor faz numa sala de médica de senhoras?

Ecologicamente correto como sou, pensei em como seriam reaproveitadas essas figuras no mundo real. A professora certamente daria uma ótima ministra da educação conservadora atual. Por causa do incômodo corporal que me causava grande agonia, ainda mais preso naquele ambiente tóxico, desejei uma surdez momentânea para deixar de escutar aquelas vozes de ódio e obscurantismo doméstico. Acabei lembrando de duas pessoas do meu bem querer. Uma abelha que tem um zumbido no cérebro e o Boneco de Lata. A abelha não se acostuma com o zum-zum-zum incomodante nem com a mediocridade geral. Provavelmente seria uma voz feminina discordante naquela assembleia de madames reacionárias. O outro é o poeta Merlânio Maia, que faz trabalho voluntário animando crianças com câncer nos hospitais. É o Boneco de Lata, levantando a autoestima dos meninos, meninas e outras espécies do caleidoscópio humano. Desejei que estivessem aqui para mudar o tom desse ambiente fundamentalista com amor, humildade e bom senso. Sim, a espera foi pior do que o exame. 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário