terça-feira, 2 de março de 2021

O folhetista na praça

 

Jurivaldo, folhetista do sertão de Pernambuco, artista que inspirou esta crônica

O folhetista na verdade é um irrealista, vive fora das coisas concretas, apesar do novo normal. Ele se diz historicista das fenomenologias do interior, um culturalista matuto. E folhetista, que é profissão extinta. Devido à pandemia, foi exilado para o cocuruto de uma serra no brejo da Paraíba. Enquadrado como aposentado inútil, passa o tempo ocioso escrevendo versos também dispensáveis.

De manhãzinha, ocupou seu lugar na praça, com sua banquinha de folhetos, seu tamborete e a mochila com a produção. Camisa preta, boné preto, calça preta e chinelos de dedo, a bengala branca completava o vestuário de um cego decoroso. Não era cego. À primeira vista, sim, mas na realidade só um velho desvairado tentando expor sua mercadoria excêntrica naquela pracinha quase sem sentimento de comunidade. As praças hoje em dia perderam a alma, sentiu? Passa o homem apressado, nem olha para os cordéis. A mocinha atenta ao celular, alheada, também não notou a presença do folhetista, um poeta invisível na praça fria.

O velho folhetista arruma seus livrinhos na banca. Títulos fantásticos, outros zombeteiros, trocistas. A visão de mundo do folhetista estava ali. Meditava sobre isso a partir de uma informação que chegou pela internet: o arquiteto japonês Hajime Narukawa recentemente atualizou o mapa do mundo, que é de 1569. Nessa atualização, a informação popular não foi levada em conta. Grupos de poder e importância não se importam com a visão popular. Pedaços de história sob o ponto de vista do povo, ali, expostos na praça. Narrativas metrificadas e rimadas com cacos de crônicas das transformações e peculiaridades da sociedade brasileira, seu produto cultural que não transita mais no meio do povo como antigamente. Sentiu ligeiro constrangimento. A impressão de que não passa de um museu de memória e registro da história de uma sociedade boçal e ignorante.

Os folhetos de títulos berrantes com suas capas coloridas, ali expostos ao desprezo dos passantes. Poucas pessoas desviavam os olhos para a banquinha do folhetista de preto e seus cordéis falando de temas atuais: “O poeta que ficou maluco na pandemia”, “O besouro embola bosta que fez pouco caso do coronavírus”, “O Doutor Penico Branco e a cura do Covid-19”. Se o leitor quisesse ler sobre sua realidade próxima, estava ali o folheto contando a história da cidadezinha desde sua fundação. Nada! Atenção zero. O provecto cordelista percebeu que sua figura era impercebível naquele ambiente. Pertencia a um tempo que não existe mais.

Sem vender nenhum cordel, o velho folhetista recolhe a produção na mochila e se ajeita para se arrastar com a bengala de deficiente, refletindo no significado da vida e no resto de galinha assada que comeria no almoço. De repente, veio inesperada inspiração. O folhetista resolveu cantar trechos de folheto, como se fazia antigamente nas feiras do Nordeste. Todo folhetista era também declamador. E o nosso poeta não tem a voz ruim, até que prima pela afinação. Temperou a goela e cantarejou dez estrofes do seu folheto “A chegada do viúvo no céu da viúva”.

Porque poeta não morre
Apenas muda de plano
Muito acima da visão
Precária do ser humano
Terra não comensurável
No santo meridiano.

Entre astros e estrelas
O viúvo procurou
Sua querida mulher
Nos sete céus encontrou
Em linda senda florida
Sua alma penetrou.

As pessoas, enfim, aglomeraram um tantinho em volta da banca do folhetista e sua toada antiga. Uma senhorinha romântica comprou o folheto.

--- Muito bonito, viu? É o senhor o viúvo?

O macróbio poeta com seu traje negro riu encabulado e saiu arrastando seu peso morto com amparo da bengala branca.

 

 

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