O pequeno rebelado, era como o chamávamos. Menos de um metro e sessenta, sorriso perpétuo nos lábios, engajado nas lutas sociais desde sempre. Raramente tomava birita. Quando o fazia, virava palhaço. No carnaval, ele na rua acompanhando as troças, puxou o rabo do boi. “Quem mexeu com o boi?” “Foi aquele menino de bigode!” Eterno menino, Frederico Guilherme de Araújo Lopes foi padrinho do meu casamento. Numa crônica lembrei dessa patuscada:
“Eu e meu parceiro Frederico Guilherme de Araújo Lopes, (que algum deus misericordioso com os bêbados, comunistas e galhofeiros o guarde em algum lugar legal), estávamos na esquina paquerando as meninas, sim, porque naquela remota era se dizia paquerar o ato de chavecar o sexo oposto. Pois bem, estávamos naquela de azarar as fulanas, quando surge na esquina meu pai puxando uma moça pela mão, aquela que era minha noiva. Foi aí que eu lembrei que era o dia do meu casamento. Em pânico, tentei fugir, no que fui impedido pelo dito cujo Fred Lopes, auxiliado por Zenito Oliveira, outro camarada meio abilolado que fazia parte da turma. Começava minha comédia dramática deste dia”.
Fred foi ferroviário, companheiro de profissão. Comunista de carteirinha carimbada, ele cometeu a suprema ousadia de namorar a filha de um tenente do Exército, numa época em que os militares mandavam em tudo no Brasil. Foi demitido da empresa e desapareceu. Quarenta e tantos anos depois, na última semana desse agosto de 2020, surgiu no meu Facebook. Morando em Parnamirim, “ainda comunista e contestador”, bisavô e palhaço nas horas vagas. Romualdo Palhano lembra que Fred foi um dos fundadores do nosso grupo de teatro. Ateu, emprestava sua voz para a gravação das falas da “Paixão de Cristo”, que encenávamos nas ruas de Itabaiana. Era a voz de Jesus. Emocionado torvelinho de cenas e falas e lances de nossas vidas como artistas amadores e profissionais da estrada de ferro. Para provocar, lembrei a ele que o Partido Comunista da China expulsou um presidente de estatal que chamou o líder Xi Jinping de “palhaço”, pelo modo canhestro de lidar com a pandemia do corona vírus. Fred rebateu: “pior é aqui que não temos um palhaço no comando, e sim um exterminador do futuro”.
Fred vivia preocupado com os trinta milhões de miseráveis no campo e na cidade, mas não ficava se lamentando nas redes sociais, que na época nem se sonhava. Dava a cara à tapa, ia à luta, “pero, sin perder la ternura”. Ponta direita medíocre, gostava de proclamar: “esquerda, só a consciência”. Fred provou que não só o Homem Aranha pode parar um trem. Ele fazia isso nas greves da categoria. Estancava a força das máquinas com a robustez de uma energia que não existia concretamente, mas vivia disfarçada naquele pequeno homem como se fosse um superpoder a crescer com suas certezas e suas mais fundas esperanças. Fazia reuniões com trabalhadores rurais sem terra no pátio da estação, à vista dos policiais ferroviários. A Polícia Ferroviária produzia relatórios semanais para os chefetes. Só porque levei para ler no trabalho um exemplar do jornal “O Pasquim”, fui citado num desses relatórios. Fred era a estrela máxima daquelas narrativas autoritárias. Acabou demitido pelos milicos. Foi ser sindicalista e agitador profissional.
Após quarenta e tantos anos, eis que me aparece o compadre
Fred nas redes sociais. Uma semana depois veio a notícia do seu falecimento.
Dogmático e fanático e devoto de um deus realmente sensível e humano, o deus do
homem redentor de si mesmo, morreu Frederico Guilherme.
“Onde o porto a que levei meu morto?”, indaga o poeta Moacyr
Félix.
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