Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Firmo o projeto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.
Firmo o projeto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.
Que náusea da vida!
Que abjeção esta regularidade!
Que sono este ser assim!
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.
Que abjeção esta regularidade!
Que sono este ser assim!
Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tique-taque estalado das máquinas de escrever.
(Trecho do poema “Datilografia”, - Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterônimo de Fernando Pessoa”)
Heterônimo de Fernando Pessoa”)
Sabendo que não irei acrescentar quase nada à dramaturgia em língua portuguesa, mesmo assim ando de vez em quando dando umas pinceladas em texto teatral que chamei de “Dactilografia”. É importante notar que fui datilógrafo profissional, aliás, dedógrafo, mas de grande perícia. Funcionei até como escrivão de polícia.
Na peça, estou criando quadros onde alguém datilografa textos ditados por outras pessoas. São colagens de situações em que a ultrapassada máquina de escrever faz o contraponto entre o moderno e o arcaico, sem ser o personagem central. A máquina é apenas a base onde se monta os conflitos, o mais das vezes irônicos e absurdos.
Em primeira mão, colo abaixo a primeira cena da peça. Dizendo ainda que cheguei à conclusão de que não sou um bom escritor de textos dramáticos e jamais o serei. É para mim uma utopia impossível. Apenas procuro o prazer de escrever por escrever.
DACTILOGRAFIA
CENA 1
Duas pessoas de Pilar tentando escrever um texto sobre Zé Lins para o discurso do prefeito no dia do aniversário do escritor.
Mesinha, duas cadeiras e uma máquina de escrever. HOMEM 1 e HOMEM 2 estão em cena. HOMEM 1 fazendo alongamento e HOMEM 2 sentado na cadeira. Respondendo ao grito do contra-regra, eles se postam para o início da cena.
CONTRA-REGRA – Atenção, vamos abrir as cortinas. Vai começar.
HOMEM 1 – Boa noite platéia, eu sou diretor desta peça, e esse é o ator que vai fazer o papel de escrivão nesta cena.
HOMEM 2 – Eu aqui me apresentando, boa noite a todos e todas. (PARA HOMEM 1) vamos começar?
HOMEM 1 – Vamos começar. Senta aí e escreve. Eu estive pensando em começar escrevendo um discurso sem grandiloqüência, uma coisa assim meio simples, como é simples o cenário humano desse povo de Pilar. O que tu achas?
HOMEM 2 – Acho que essa é uma ideia de jerico.
HOMEM 1 – Já começou a oposição...
HOMEM 2 – Sim, porque vamos ter visitantes, pessoas da elite, intelectuais que querem ouvir um discurso do prefeito conforme os ouvidos dos caras estão acostumados.
HOMEM 1 – E seus ouvidos estão acostumados a que? A ouvir as baboseiras do dia-a-dia do prefeito!
HOMEM 2 - Sem confrontações. E você quer que eu datilografe um discurso de elogio a Zé Lins do Rego, numa máquina de escrever do século vinte. (PARA A PLATÉIA) Vocês sabem o que é uma máquina de escrever? É esse instrumento aqui, que a gente usava para escrever cartas e tudo o mais que se faz hoje com o computador.
HOMEM 1 – E o que é que tem a máquina de escrever? Isso aqui é teatro, se tu não sabes. Tudo é simbólico. Essa máquina de escrever representa o sacrifício físico do cara que se dispõe a criar textos, a escrever. Se não sabeis, ficais inteirado que na época de Zé Lins não havia computador e processador de texto. Portanto, deixai de lenga-lenga e começai a datilografar o que eu vou ditando.
HOMEM 2 – Não perde a mania de ditador. Mas é assim mesmo. O diretor de teatro é um ditador enrustido. E o ator é um escravo do ditador.
HOMEM 1 – Sem discurso esquerdista que aqui é uma cena de teatro mostrando um cara sem ideias, que sou eu, procurando pensar em alguma coisa para ditar a um cara sem cérebro, que és tu, a mando de um jumento que é o prefeito.
HOMEM 2 – Vou não, posso não, quero não, a mulher não deixa não... (LEVANTANDO-SE PARA IR EMBORA)
HOMEM 1 – Espera aí, camarada! Tenha calma. Veja bem: eu tou brincando quanto ao prefeito. Nosso bom homem é um sujeito decente e inteligente. Se não fosse assim, não seria o prefeito. Vamos tocar o barco. Tens paciência, homem! Tens calma, ó homem de pouca fé, senta nesta porra desta cadeira e escreve.
HOMEM 2 – Eu vou botar aqui no começo: DISCURSO DE IMPROVISO.
HOMEM 1 – Isso! Bom título. Depois dessa palhaçada, o prefeito manda me degolar e capar tuas insignificâncias. Façamos assim, e leva a sério: escreves o intróito.
HOMEM 2 – Escrever o que?
HOMEM 1 – O intróito, ó homem de poucas letras! O início, a introdução desta peça elogiativa ao nosso grande escritor de Pilar, terra de homens varonizes.
HOMEM 2 – Varonizes? Varei...
HOMEM 1 – Usai o que resta dos teus minúsculos neurônios, e começai a peça oratória a ser proferida pelo nosso alcaide.
HOMEM 2 – (DATILOGRAFANDO) Declaração. Eu, Fulano de Tal, ator, declaro que não me responsabilizo por qualquer palavrão, palavrinha ou expressões dúbias contidas nos textos que a seguir se verá e ouvirá neste palco, e que venham a ofender a pátria, os patrícios, as patroas ou os patrões desse imenso Brasil varonil. E principalmente ao digno e ilustre senhor prefeito deste lugar.
HOMEM 1 – (PARA A PLATÉIA) Já sei! Esse cara é gênio. O que ele quis dizer com essa declaração paranóica foi justamente enfatizar a situação política em que vivíamos no Brasil em 1932, ano em que foi publicado o livro “Menino de Engenho”, e depois com o Estado Novo. Este homem aparentemente ignorante quer enfatizar o lado político e ideológico do Zé Lins, que mesmo discordando das ideias comunistas do seu amigo Graciliano Ramos, foi quem mais se empenhou para conseguir sua libertação quando o velho Graça foi preso em 1936, pela ditadura Vargas.
HOMEM 2 – Vou não, posso não, quero não, a mulher não deixa não... (SAINDO)
HOMEM 1 – O que foi agora, compadre? Estamos no século 21, a ditadura já acabou faz tempo, até a máquina de escrever usada para registrar os depoimentos dos presos políticos já saiu de uso há muito tempo. Por que o medo, ó homem de pouca fibra?
HOMEM 2 – Tu e tua mania de politizar as coisas, sabendo que aqui não se usa desse lenga-lenga. Não sei onde é que se pode ver ideologia de esquerda na obra e na vida de Zé Lins. E sabendo que o nosso amado prefeito jamais dirá, nem mesmo em sonho, uma só palavra que signifique o mínimo minimório de subversão.
HOMEM 1 – Tolo homem, o prefeito dirá o que quisermos que ele diga, mesmo porque jamais saberá o que ele mesmo vomitou no tal discurso, sabendo nós o nível de desinstrução que aureola aquela cabeça mercantil, que só entende de dinheiro e gado. Portanto, datilografai o que andei escrevendo:
Caros conterrâneos e dignos visitantes: na qualidade de prefeito da terra de Zé Lins do Rego, começo dizendo que José Lins do Rego tinha grande cabeça e enorme coração...
DAT
... como bem afirmou seu irmão de letras Graciliano Ramos...
DAT
...e foi o escritor das vidas molhadas e pujantes da várzea do Paraíba, enquanto Graciliano escreveu sobre as vidas secas do sertão...
DAT
...mas os dois apontando para o fogo morto da cultura, da economia e da riqueza do Nordeste.
DAT
...a aridez do sertão e a exuberância da zona da mata como cenário da desumanização do homem nordestino, ficando os dois grandes literatos ligados por este signo ideológico.
DAT
(MUDANDO DE LUGAR)
HOMEM 2 – Agora acunha aí a minha parte: José Lins do Rego, mestre do romance regionalista,
DAT
cronista e advogado, membro da Academia Brasileira de Letras, fiscal do consumo e devotado filho do velho Pilar, só tinha um defeito.
HOMEM 1 – E qual é o defeito de Zé Lins, ó homem insensato?
HOMEM 2 – Era flamenguista! (EXPLODE HINO DO FLAMENGO. OS DOIS SAEM. HOMEM 2 VOLTA)
HOMEM 2 – Ninguém é perfeito!
Oi Fábio, bom dia:
ResponderExcluirQuando conclui com 13 anos meu curso de datilografia recebi o diploma com festa no clube Astréia. Dancei a valsa com meu irmão. O vestido foi feito por dona Nina Lima, a modista da época. A alta sociedade esteve no clube pois tanto diplomandos como suas famílais estavam muito felizes com o progresso dos seus filhos. Era a época ingenuidade que não deixava de ter seus atrativos e mistérios. Um abraço de
Lourdinha