Você dorme pensando que a barata esgotou sua capacidade de
criar, acorda e a barata se revela mais criativa. É um fenômeno da natureza. A
barata descansando em sua toca, em plena folia de um carnaval que não existe
mais, acabrunhando a já humilhada raça dos descarnavalizados, em modo off na pandemia sem alegria. O espírito
do inseto passeia automaticamente de uma imagem para outra, em abstrações
sistemáticas da consciência antiga e prenhe de saudades-roxas e cheirosas.
Passeios na bicicleta Monark do tio Djalma com chapeuzinho
de palha e as frasezinhas pseudopicantes, óculos escuro artesanal, lança de
material plástico e o jogo da memória rodando em torno dos “Toureiros”, “As
piruas”, “As putas da Rua das Flores”. Outros blocos vão surgindo, sem risos,
sem som, sem bebidas, cortejos fantasmas em preto e branco. Velhos carnavais
vividos e não vividos. Carnavais sem camisinha. Carnavais sem paredões. Dia de
sol, domingo de fantasia, segunda de glitter
e abadá, terça de ninguém é de ninguém, quarta de “tô me guardando pra quando o
carnaval chegar”. Celebrar essa humanidade sem rumo, pensando que vive em outro
mundo. “Se o amor é fantasia, eu me encontro em pleno carnaval”, como sonhou
Vinicius de Morais. “O Carnaval é uma festa de criança encenada por adultos”, garante
o imaturo Pedro Pueril. “Carnaval pra quê, se eu passo o ano inteiro sambando
na cara dos outros?”. E depois do carnaval? O chá de bebê. E depois? É emendar os fatos psicológicos carnavalescos, os afetivos,
os representativos e os que escolhemos para puxar os vagões dessa composição
alucinada carnaval a dentro das ruas mortas das quartas de cinza.
Prazeres inconsequentes, pileques homéricos, heroicos na
resistência dos três dias de conflagração. Rolava até patente para os mais
vigorosos e resolutos na arte de ingerir álcool. Cheguei à graduação de major.
Desejos lancinantes, paqueras inconvincentes, excitações espantadiças. Alegrias
mascaradas, dissimuladas, sub-reptícias. A camada do talco barato no suor do
crânio, o cheirinho da loló recentemente inaugurado no éter etílico da
quinta-essência dos principiantes da gandaia grotesca. O riso idiota aberto na
rua, atrás dos caboclinhos. O gingado palerma, a dança bocó acompanhando o
ritmo dos índios do mestre Mocó. O solfejo desarmonioso seguindo o cortejo das
“Virgens Venéreas”. O primitivo instinto teatral seguindo os movimentos do
mestre Josa e seus índios “Assombrados da floresta”. Maravilhamento diante do
boi do mestre Especiá. Assustado, contemplando tanta audácia de meros “zé
ninguém” transformados em condes, reis e rainhas, nobres do povaréu. “O
malandro é o barão da ralé”, descobre Chico Buarque. O que resta de dignidade e
brio do pobretão, desfilando solene e cheio de virtudes artísticas nas ruas do
meu carnaval nostálgico. Os poetas da baderna, bêbados líricos da grande farra
sazonal, o folião e sua fantasia no bloco de um homem só, insociável brincante
se instituindo a si mesmo na sua expressão de arlequim engenhoso. Ecos de um
carnaval distante da sociedade de consumo. Celebração pagã de antigos bárbaros
comendo, bebendo e dançando tristemente em bailes de devaneios malcontentes.
Desfile de blocos de uma só figura, os tais monoblocos.
Carnaval pandêmico. Desfiles cadavéricos, bailes macilentos,
homens e mulheres mascarados antipáticos e enfermiços. Incivis e desabridos
foliões sem máscara, lívidos de ignorância. Adereços desbotados lembrando a
solução para o mal. Álcool em gel nas mãos do infiel. Desfile de massas humanas
individualizadas, na solidão do carnaval dos estúpidos. Instintiva e intuitivamente,
o bufão do carnaval quer ser cada vez mais uma barata galhofeira para fugir do
chinelo baraticida. “Comamos e bebamos que amanhã morreremos”, assim escreveu o
profeta em I Coríntios, 15:32. Ele, o iluminado bíblico, ainda garantiu que “os
mortos não ressuscitam” e, portanto, aproveitem o carnaval enquanto a dona Onça
Caetana não vem, disfarçada de febre, tosse, cansaço, perda de paladar e olhos
vermelhos. Ela se aproveita da cobertura vacinal incompleta pra deitar e rolar
no carnaval do flagelo pestilento. Nos carnavais primitivos, as bacantes
evocavam o deus Dionísio (Baco para os Romanos), gritando festivamente: “Evoé,
aí vem o carnaval!” Os que querem viver até a última gota azeda de vida, esses
gritam no carnaval da pestilência: “Oh mané, tira o disfarce da cegueira e bota
máscara!”
Nenhum comentário:
Postar um comentário