segunda-feira, 15 de novembro de 2010
Tragédia natural familiar
João Dias foi proprietário da única banca de revistas existente em Itabaiana nos meus tempos de garoto apaixonado por gibi. Chamava-se “A Juventude”, misto de rodoviária e ponto de venda de jornais e revistas. O dono era um senhor elegante, simpático. Muito bem quisto na sociedade, João Dias era a delicadeza em pessoa. Gabava-se de ser um exímio dançarino. Era responsável pelo bar do Itabaiana Clube, associação de lazer da elite local.
Fui visitar João Dias, encontrei-o sofrendo de uma doença degenerativa que lhe rouba a memória. Quase não me reconheceu. Tem lampejos, apenas. Quando repentinamente brilha uma lembrança, ele abre o sorriso bonito. Minha comadre Clévia Paz convidou o antigo bailarino para dançar. Ele não se fez de rogado: rodopiou pela sala, ao som de um foxtrote imaginário.
A esposa de João Dias também sofre de enfermidade semelhante. Já não anda, inválida e sem memória numa cama. O casal que brilhava nos salões chiques de Itabaiana, exemplo de união e afeto conjugal, agora não se reconhece. Sinto muito, meu amigo João da Juventude. O cérebro de alguém indo embora paulatinamente é como morrer de forma lenta, mas não fisicamente. O velho João da Juventude está se despedindo da festa.
Foi personagem de uma cidade que deixou de existir, com seus códigos de honra ultrapassados, seus valores idem. Amou essa terra, adorou a família, foi um cavalheiro como hoje não se usa mais. Gravei em vídeo seu sorriso de artista de cinema, antes que se apague de vez.
Se você analisar os fatos friamente e objetivamente, vai ver que vivemos em função de sinais elétricos cerebrais. Quando o cara tem um curto-circuito na cabeça, volta a ser aquele macaco primitivo com quem você até pode tentar conversar, mas não verbalmente. Nesse estágio, o ser vivo atende aos estímulos do carinho, por exemplo. Se existe qualquer coisa parecida com alma, deve se esconder ou começar a juntar os trapos para a grande mudança, deixando a carcaça sem consciência.
Meu amigo João Dias está sem muita consciência verbal e lógica. O cérebro se recusa a produzir comandos que acionem as lembranças. Houve uma interrupção nas vias de comunicação. Isolado, João só tem um canal de ligação com o mundo: a filha Celinha. Sua noção da realidade agora passa pela filha. Clévia perguntou:
-- Seu João, conte como eram os bailes no Itabaiana Clube no seu tempo.
E ele:
-- Quem sabe aí é Celinha. Ela é quem sabe de tudo.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário