sábado, 4 de setembro de 2010

A revolta das putas


"A hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude" ( La Rochefoucauld, moralista francês)


Esse episódio da história de Itabaiana é contado pelo escritor pilarense José Augusto de Brito em seu livro “Pingolenço – um tributo à arte”. Foi uma espécie de levante contra determinação do prefeito Durval de Almeida que mandou fechar as casas de prostituição da rua do Carretel, acabando com o negócio do sexo pago na então progressista Itabaiana, centro de intenso comércio de gado. As meretrizes eram representadas por Rita do Bonde, líder dessa classe laboral, mas o grande incentivador da revolta foi o palhaço Pingolenço.

Quem era Pingolenço e por que socorreu as mulheres-damas nesse fato notável que sucedeu nos idos de 1930? O Pingolenço foi um gênio nascido em Itabaiana. Autodidata, era desenhista, pintor, mecânico, engenheiro, mestre de obras, músico e eletricista. Construiu um circo onde trabalhava como palhaço, trapezista, bilheteiro, apresentador e cantor, além de único músico da banda. Hélida Brito, filha do cronista José Augusto de Brito, nos conta que o palhaço Pingolenço era querido e respeitado por todos pelo seu bom coração.

Foi então que o prefeito Durval de Almeida, atendendo aos reclamos das Filhas de Maria, Apostolado da Oração e outras beatas preocupadas com a moral pública, condenou as raparigas, coibindo a prática e fechando as chamadas “casas de tolerância” da Rua do Carretel. Os homens, fregueses das “meninas”, engoliram a proibição com medo do escândalo que seria defender publicamente o direito daquelas pobres criaturas de sobreviver. Sem ter um ofício, sem renda suficiente, as “mariposas”, ou “filhas de Eva” como se dizia antigamente, passaram a pedir esmolas nas ruas, aumentando o contingente de mendigos nas sextas-feiras. Completando o quadro trágico para essas infelizes criaturas, o delegado baixou uma portaria obrigando as putas a usar um remendo de estopa no vestido, “para distinguir das senhoras de bem”.

Com o fechamento do cabaré, os índices de crimes sexuais aumentaram sensivelmente. As mulheres de “vida fácil”, umas foram embora, as que ficaram procuravam o ofício de lavar roupa no rio. O palhaço Pingolenço tomou as dores das pobres mulheres. Quase sozinho, começou uma campanha para derrubar o decreto do Prefeito e a portaria indecente do delegado, que “depõe contra a dignidade humana”. Já naquela época, o palhaço Pingolenço entendeu que prostituição não poderia ser considerada vadiagem por constituir um meio de subsistência, ainda que considerado “imoral” pela sociedade hipócrita e conservadora. Estudando as leis, Pingolenço descobriu que o Código Penal não punia e nem pune a rameira pelo comércio carnal, mas tão somente aquele que tira proveito da prostituição alheia.

O rábula das rameiras não só impetrou requerimentos ao Juiz como liderou o movimento de apoio às desprotegidas meretrizes da rua do Carretel e adjacências. Na grande feira livre, nos intervalos das acrobacias, malabarismos e palhaçadas, Pingolenço despejada o verbo a favor do direito das prostitutas exercer sua ocupação. Com a cara limpa ou pintada, Pingolenço não titubeava em afirmar que sexo é uma necessidade fisiológica que, a exemplo das outras, se não for saciada chega a proporções desagradáveis e até ilícitas. Assim, cabe ao Poder Público melhor reflexão no que tange à prática da prostituição antes de pensar em afugentá-las de locais públicos ou matar as rameiras de fome.

Tanto fez que conseguiu abrir as casas das messalinas, salvando-as da falência. O prefeito voltou atrás, mesmo ameaçado de excomunhão pelo padre. José Augusto de Brito assim encerra sua crônica: “O povo, sentindo a liderança de Pingolenço, quis por todos os meios fazê-lo prefeito da cidade. Ele desculpou-se assim: “Eu nasci mesmo foi pra ser palhaço”.

Esse episódio foi abafado pela crônica oficial. Na lembrança oficial isso nunca existiu, mas não na memória subterrânea daqueles lutadores comprometidos com a história de transformação social. Pingolenço hoje é nome de rua em Itabaiana. Merece monumento pelo extraordinário artista e ativista dos direitos humanos que foi. “A luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento” escreveu Milan Kundera.

2 comentários:

  1. Caro Fábio, sinto-me lisonjeado em vê-lo fazer referência ao grande poeta e escritor pilarense José Augusto de Brito que nos deixou neste ano de 2010. Para mim, pelas suas ações no resgate da cultura nordestina, você merece não só um título de cidadão, mas o Prêmio Nobel de Literatura!!!

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