quinta-feira, 25 de março de 2010
Tocata de sonhos
Vi uma banda tocando músicas do tempo em que eu me deliciava com a rabeca de Biu e a sanfona de Hermínio, aquelas melodias lindas que a cirandeira Arlinda Verdureira cantava com a alegria dos puros nas noites de Natal em Itabaiana. Quase posso reproduzir de memória os acordes do violão famoso de Artur Fumaça nas barracas da bagaceira, nas festas de Nossa Senhora da Conceição. O conjunto regional Asa Branca encanta o público com suas letras irônicas e bem humoradas, e a vocalista deficiente visual mostra o quanto é bom ser artista, e como vencer limites. Nisso veio a ideia de formar uma banda regional no Ponto de Cultura Cantiga de Ninar. Reunido o coletivo, escolhemos o nome: “Ganzá de Ouro”. Quem sabe tocar um instrumento, toca; quem não sabe, canta. Quem nada produz em matéria de música vai desenhar o figurino, mexer com as coisas da produção. Assim nasceu o “Ganzá de Ouro”, com a proposta de recuperar o cancioneiro popular nordestino, injetar sangue bom na moléstia que traz a putrefação de nossa cultura.
Estaríamos pregando no deserto? Pois fiquem os senhores sabendo que a expressividade dos nossos sons de raiz ainda encontra eco no meio da juventude. Val tem 31 anos, é oficineiro do Ponto de Cultura e se dispõe a tocar pandeiro no “Ganzá de Ouro”. Zé Severino, um rapaz de 25 anos, mostra-se sinceramente interessado em exibir seus dotes de tocador de alfaia no nosso grupo musical. Os maestros Vital Alves e Josino Mendes nunca viram tanta animação em um grupo de jovens para ensaiar as músicas centenárias da Barca, levantar a bandeira do Fandango dos cavaleiros mais nobres de nossa cultura. É aparência de vida e despertamento o que se repara na moçada, preparando-se para essa viagem ao imaginário perpétuo de nossa música fundada na tradição, que tem real valor artístico e humano.
Não apaguem os lampiões da Rua das Flores nem queimem agora as flores da lapinha. Não duvidem porque a moçada do Ponto de Cultura já armou o mastaréu, que é o mastro da Nau Catarineta. Tudo autoriza a afirmar que o folguedo dos marujos vai descer de Cabedelo para cantar e dançar o espírito libertário da Paraíba no ritmo dos corpos dos brincantes. O coco de roda do velho Pabulagem vai voltar a reunir os grupos de negros vocacionados para a expressividade dos sons que vieram da África. A terra do Tenente Lucena, feito uma contradição do tempo, vai exibir seus novos brincantes porque a memória e a manifestação do belo ainda não foram revogadas, apesar desse instante-acidente. O balé popular das areias da praia, a dança graciosa e ritmada pelas ondas do mar de uma ciranda já faz a roda e chama para o círculo os que estão fora do movimento rotativo de nossa cultura de raiz. A comadre Das Dores já veste sua saia longa de tecido estampado e blusa branca para dançar o “cabôco-véio”, a “cana verde” e a “choradinha”. O mestre cirandeiro é Fred Borges, que sola ao som da zabumba de Normando Reis e o ganzá de Edglês.
Acontece tudo isso para anunciar que João Redondo de Chico do Doce já se encontra na tolda do mamulengo para participar ao respeitável público que o Bumba-meu-boi de mestre Zé Leiteiro e os caboclinhos de Mocó tomam lugar no cenário e começam seu entrecho dramático-carnavalesco, para honra e glória de Pai Francisco e Mãe Catirina. Tudo isso ao som da flauta barroca em fá do mestre Josino Mendes e da viola célebre do maestro Vital Alves. Eu vou tocar meu humilde violão para dançarem a Burrinha, a Ema, a Catirina, o Mateus e o Bastião do Cavalo Marinho. Depois é louvar o Menino Deus, lembrando as jornadas esplendorosas de “Boi de Bico” com seu pastoril profano e a lapinha cristã de dona Amélia.
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