quinta-feira, 1 de julho de 2010

Minha vida é um trem desgovernado




Esse foi o mote que dei ao poeta Manoel Xudu em uma noite chuvosa na cidade de Itabaiana, tomando aguardente “pau dentro” em uma barraca na beira da linha, justamente no “corte da merda”, quem é de lá sabe onde é. Eu era ferroviário, estava praticamente no meio dos trilhos ouvindo maravilhado a cantoria de pé-de-parede do Manoel com outro cantador, do qual esqueci o nome.

Xudu já estava mais pra lá do que pra cá, mesmo assim cantou versos arretados de bonitos, daqueles que você fica imaginando em como seria bom ter escrito ou pensado antes. Mas gênio é gênio e é pra ser invejado mesmo. Falava, ou melhor, cantava com sua voz meio rouca de cachaça e cigarro reflexões tão profundas e ao mesmo tempo causando impressão forte de lirismo nas mentes daquelas pessoas simples que você notava nos semblantes dos ouvintes aquela admiração comum quando nos achamos diante de um espírito extraordinário e inspirado.

Teve um momento em que Xudu pediu pra que eu declamasse Augusto dos Anjos, poeta presente em 9 de 10 mesas de bar. Era minha chance de fazer figuração naquele espetáculo de poesia, música e excitação da alma. “Versos íntimos” foi recitado com toda a força dramática que consegui arrancar da mente nebulosa e um tanto enxovalhada pelas muitas doses de “cabumba” com sarapatel de porco. Para quem não sabe, “cabumba” é uma aguardente com teor alcoólico elevado, feita do aproveitamento da borra da garapa. Quando terminei, ouvi alguns aplausos acanhados e um comentário do matuto ao lado:

─ Sou mais o trem sem maquinista...

Dos inúmeros e deslumbrantes versos em “martelo agalopado” construídos por Xudu a partir do mote, lembro apenas dos que consegui anotar na carteira de cigarro. Alguns deles:

Minha vida é assim e nada muda
Nos vagões desse trem desgovernado
Onde sou carcereiro e apenado,
Guarda-freio ao léu pedindo ajuda.
Rogo a Deus lá do céu que me acuda,
No caminho de ferro dê a pista
E aponte no meio dessa lista
O astral da fortuna detalhado,
Minha vida é um trem desgovernado
Sem destino, controle ou maquinista.

Fui largado no meio do caminho,
Ambulante de mera fantasia,
Vivo assim sem registro todo dia
Enfrentando tufão, redemoinho,
Minha cama é feita de espinho,
Em vagão cruel e determinista,
Portador de bilhete fatalista
Que não leva ao destino desejado,
Minha vida é um trem desgovernado
Sem destino, controle ou maquinista.

O farol desse trem nada ilumina,
Deslizando nos trilhos da paixão,
Pára sempre na mesma estação
De lembrança cruel que alucina,
Detonando dose de adrenalina
Na cabeça do pobre repentista
Que por isso só vive pessimista,
Sem alento e desorientado,
Minha vida é um trem desgovernado
Sem destino, controle ou maquinista.

Um comentário:

  1. Eita, mulesta dos cachorros! Queria ser transportando numa daquelas máquinas do tempo e estar lá agora nessa cantoria, tomando umas lapadas de 'pau-dentro' e ouvindo maravilhado o cantador. Belo registro!

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