sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Meu amigo baiano


Dizem que baiano burro nasce morto. E paraibano nem nasce! Conheci um cara a quem chamavam de Baiano, mas ele mesmo nunca definiu de onde veio. Foi assim: em 1972 eu editava um periódico literário por nome “Jornal Alvorada”. Arrumei emprestado com o prefeito de Itabaiana, Aglair da Silva, um maquinário gráfico antigo e montei minha tipografia numa casa de taipa no bairro Açude das Pedras. Não havia eletricidade, a impressora era manual. Meu ajudante chamava-se Biu Penca Preta. Por aí se percebe a imprestabilidade daquele empreendimento, sem muita ligação com a realidade.

Um dia me aparece um senhor de meia idade, alto e magro, cabelos compridos brancos, barbicha idem, maltrapilho e super gago. Pedia esmolas. Alguém o chamou de baiano e ficou assim batizado. Gostei do seu jeito, logo foi agregado à gráfica “sopapo” como ajudante. Dormia na casa, alimentava-se de pão e água, fumava muito. Queixava-se de uma dor de cabeça crônica. Para amenizar a dor, soltava bombas junto ao ouvido. Creio que sofria de um tumor cerebral.

Descobri que Baiano falava, lia e escrevia em inglês, alemão e espanhol, adorava ouvir as rádios estrangeiras em ondas curtas. E revelou-se para mim outro fenômeno: Baiano tinha uma memória excepcional. Decorava tudo que lia imediatamente. Sabia a Bíblia toda de cor.

Comprei um rádio velho para ele. Passava as noites ouvindo emissoras de outros países e fumando sem parar. De vez em quando soltava uma bombinha perto do ouvido para amenizar a dor. Esse homem cuja amizade me honrou, viveu conosco até morrer, certamente do mal de que se queixava. Por indecisão, negligência ou por outras razões, jamais soubemos de suas origens, do seu passado. Suas manias e seu jeito denotavam alterações patológicas. Sua mente guardava segredos acima do padrão normal.

Não existem vidas comuns. Cada uma esconde um milagre.

Eliane Brum é uma jovem jornalista, autora de um livro chamado “A vida que ninguém vê”. Nele, a autora afirma que “não podemos nos iludir com a cegueira do cotidiano”. Para ela não existem vidas comuns, existem olhos domesticados.

ILUSTRAÇÃO: “Cabeça de velho”, de Cândido Portinari

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