sábado, 27 de fevereiro de 2010

Fluindo no compasso de dona Gilka


Meu considerado amigo de infância, Joacir Avelino envia congratulações pela inauguração da Biblioteca Comunitária jornalista Arnaud Costa, instalada no Ponto de Cultura Cantiga de Ninar. “Um país se faz com homens e livros”, lembra Joacir, citando Monteiro Lobato. O compadre lamenta que o poder público não dê importância a este aspecto da cultura. É de fazer dó a situação de abandono das bibliotecas públicas municipais, nos raros municípios onde existe esse equipamento.

Joacir aproveita para retomar suas memórias do tempo em que viveu em Itabaiana, “de menino a rapazinho, de rapazinho a rapaz”. Registro suas reminiscências no afã de (re)construir a história da terra de Abelardo Jurema. Ele recorda das aulas de música com a professora Gilka no Colégio Estadual. Considera que a música nas escolas diminui a violência, muito mais do que outras manifestações culturais ou esportivas.

Lembro das aulas de música “como quem ouve uma sinfonia” gostosa do passado, no compasso da mansidão, beleza e charme de nossa mestra dona Gilka. Acho que me apaixonei por ela, porque se desenha bem distante uma sensação de interação psicológica quando participava de suas aulas. Havia um velho piano desafinado onde nossa mestra tentava passar as notas da escala musical. Essa sutil influência deve ter marcado muitos de minha geração, além de Joacir Avelino. Sei que ficava fascinado com as aulas de música. A linha do tempo se confundindo com as linhas da pauta onde garatujávamos os acordes.

Se a maior parte do que ouço hoje é ruído, se me perturba a canalhice e pobreza da atual música popular brasileira, essa sensibilidade devo muito às aulas de música que tive no Colégio Estadual de Itabaiana. Mas procuro entender as mudanças do meu tempo, sem deixar de fazer um paralelo com o pretérito.

Os sons da minha adolescência têm gosto de pecado original. Eu tinha apenas 14 anos, era virgem e inocente, sentia um arrepio quando ela segurava em minha mão para espalhar meus dedos trêmulos no teclado do velho Essenfelder consumido pelo tempo. Acho que nunca cheguei a cobiçá-la ou desejá-la conscientemente. Meu mundo musical escolar foi um território sem culpa. Os valores morais da sociedade visível tinham um certo filtro de censura que moralizava o desejo. Se sonhei algumas vezes, é culpa do superego, e só Freud explica.

“Viver é afinar os instrumentos”, escreveu Jorge Luiz Borges. Jamais vou terminar os compassos daquelas aulas. Depois passei a ler Jorge Amado, e vim a conhecer o cravo, a canela e outros encantos. Mas o “cravo bem temperado” daquelas lições de dona Gilka era uma química absolutamente maior do que todas as experiências que provocaram minha comoção de adolescente tímido.

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