sábado, 17 de abril de 2010

Homem dos sete instrumentos


Em uma de minhas crônicas diárias neste blog, escrevi sobre o médico Antonio Batista Santiago, líder político da velha Itabaiana. Recebi carta eletrônica do confrade Erasmo Souto sobre o tema: “Sem dúvida, enquanto viveu Dr. Antonio Batista Santiago compôs a lista de homens probos e de reputação ilibada entre os itabaianenses. Era meu padrinho e com ele viajei a muitas localidades vizinhas para vê-lo realizar serviços médicos. Muitas vezes, terminado o trabalho, via-o olhar para um lado e para outro, como se analisasse a má situação financeira do dono da casa; nada cobrar. Fui também locutor dele nas campanhas políticas. Uma raça de político já extinta”.

Outra figura extraordinária de nossa história é um cidadão por nome José Pereira da Silva, apelidado de Pingolença. Meu pai, Arnaud Costa, conta que esse itabaianense da gema era um sujeito baixinho, metro e meio de inteligência, magrinho e elétrico. Mexia com tudo, sabia de tudo e em tudo dava jeito. A banda de música precisou de um músico, ele aprendeu a tocar bombardino, e bem! Foi servir à bandinha, como músico e afinador dos instrumentos. O Tiro de Guerra necessitava de um bom atirador de elite, função que Pingolença passou a ocupar, sendo que nas horas vagas consertava os velhos fuzis. Na ausência do sargento instrutor, ele dava uma de comandante, ora, pois não!

Era pintor de mão cheia, mestre alfaiate, mestre mecânico e de obras. E artista. Pingolença, além de músico, atuava como palhaço de circo, mágico, acrobata, trapezista, comediante e o que mais precisasse fazer em um circo. Montou sua própria companhia, o Grande Circo Central, que por falta de transporte não saiu dos limites de Itabaiana, mas fez muito sucesso armado na Praça da Indústria, em frente ao curtume.

Nossos conterrâneos de então, para ilustrar o gênio de Pingolença, diziam que ele pintou uma vaca na parede, e do bicho tirou mais de dois litros de leite. Nessa época, o fazendeiro Odilon Maroja doou à igreja matriz o relógio que ainda hoje bate as horas e acompanha nossa vida provinciana há muitas décadas. O vigário Monsenhor Francisco Coelho recebeu de São Paulo os caixotes com as peças do relógio para armar. E quem sabia montar aquele quebra-cabeças sem manual de uso? Trazer um técnico do Sul era coisa que nossa humilde paróquia nem sonhava, por falta absoluta de recursos. Quem foi chamado para resolver o caso? O nosso Pingolença, o herói da resistência naqueles tempos tão atrasados. Durante mais de dez dias, Pingolença trabalhou sozinho no alto do campanário, montando o relógio, até que conseguiu juntar todas as peças e botar para funcionar o maquinário complexo, para orgulho e admiração dos fiéis e de toda a comunidade.

Isso eu li no livro “Itabaiana – sua história, suas memórias”, do jornalista Sabiniano Maia. O fim de Pingolença, quem conta é meu pai. Diz que ele envelheceu, as mãos antes ágeis ficaram inutilizadas pela artrite, e foi esquecido pelos seus conterrâneos. Passou a viver de favores em uma casinha caindo aos pedaços. A cidade a quem tanto ajudou lhe virou as costas. Para iluminar sua pobre residência, Pingolença esperava passar o carro de boi do vendedor de querosene e aparava os pingos que caíam da torneira. Um dia, o dono do querosene o humilhou publicamente por causa disso. Não resistindo à emoção do ultraje, Pingolença sofreu um ataque cardíaco e morreu no meio da rua. Teve um enterro de indigente, com poucos amigos acompanhando o féretro daquele que foi um dos maiores gênios que Itabaiana criou.

O padre Antonio Vieira, referindo-se ao grande paraibano André Vidal de Negreiros, escreveu que este “era possuidor de quase todas as qualidades de um grande homem; só lhe faltava ser poeta”. O mesmo se pode afirmar do itabaianense Pingolença. No modestíssimo burgo, de vida medíocre, que era Itabaiana do começo do século vinte, sobrava em Pingolença as qualidades da bondade, inteligência, decência e altruísmo. Hoje é nome de uma ruazinha, transversal à Treze de Maio, que se vê na foto do blog. Um sujeito com altíssimo grau de capacidade mental criadora, de extraordinária inteligência e habilidade, dedicou sua vida aos interesses de sua terra. O talento de Pingolença deveria ser aclamado e divulgado em nossas escolas, como exemplo de um dos mais brilhantes itabaianenses de toda nossa história mais que centenária. Estátua na praça é pouco. Se prefeito fosse, eu decretaria uma semana inteira por ano para se homenagear esse espírito benéfico e genial.

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