sexta-feira, 31 de julho de 2009

A mala moscovita do Mister Kaltos


Mais conhecida como a mala misteriosa, a moscovita é um baú onde o ilusionista se fecha com cadeado para logo depois reaparecer, sem abrir a tampa. Meu tio Luiz Mello era especialista neste truque mágico clássico. Antes de morrer, ele demonstrava angústia por não deixar nenhum herdeiro de sua arte. Ninguém se interessou em aprender o truque da mala moscovita.

Fiquei com a mala em minha casa, guardada no quartinho dos fundos. Na submersão da noite, eu não consigo mais dormir direito, sonhando sonhos impossíveis como a mecânica de sair da mala, trancado por fora. É um desafio inquietante no ermo de minhas madrugadas insones. Meus arquivos mentais rolam morosamente, sem entender o sentido da mala, da morte, da vida.

Quando adolescente, comecei um conto com a frase: “o que há atrás da porta?” Pensava nessa tentativa frustrada de produzir um conto de fundo psicológico, mas agora, talvez o conto se iniciasse com a pergunta: “o que há dentro da mala?”

Meu tio deixou muitos aparelhos mágicos: baralhos, espadas, cadeiras de levitação, bolas, argolas chinesas e cordas falsas. Tenho segredos escondidos debaixo da cama, dentro dos armários e em lugares inesperados. O ardor apaixonado do meu tio Luiz pela arte mágica acumulou um mundo de pequenos encantamentos. Mas a mala moscovita foi elevada à categoria de símbolo, não de uma carreira de ilusionista, mas de minhas frustrações pessoais. Fora da mala sei que chorei lágrimas doces, acessei vagas lembranças e uma saudade já esquecida, expectativas de sonhos há muito sepultados. Velho sem amanhã, olho para a mala, olhos tensos, um brilho de desafio que acaba logo. O mistério da mala continua lá, como a esfinge: “decifra-me ou te devorarei”.

Um dia desses vou abrir a mala moscovita e descobrir o fundo falso por onde o corpo franzino do Mister Kaltos escapulia num piscar de olhos, reaparecendo, glorioso e vitorioso, para os aplausos da platéia. De qualquer modo, é como se, partindo, ele se perpetuasse nessa mala que toco e acaricio como um pedaço de mim, sangue do meu sangue.

São quase cinco horas da manhã, mais uma noite insone. O céu com promessa de chuva. Sentado na mala moscovita, ouço murmúrios abafados saindo pelas frestas da velha arca, ruído de passos sussurrantes no pequeno quarto escuro. Então começo a medir a extensão daquela preciosidade, resolvido a não mais mexer nos seus mistérios.

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