sábado, 5 de julho de 2014

MICROCONTOS




Despedaçado

O rapaz seguia aos pedaços. O resto dele ficou pelo caminho, a ambulância está tentando resgatar o que sobrou. Ainda usava o coração e outros órgãos vitais. A quem se surpreendia com seu desembaraço, mesmo aos pedaços, argumentava: “Encontro todos os dias gente sem cérebro, sem caráter e sem olhos e estão todos caminhando por aí. Alguns até falam de amor, de Deus e humanidade.”


Objetos improváveis

Só trocaram duas ou três palavras. Entrando no quarto minguante, deixou lá fora a postura ética. O diálogo acabou. Ela tira a roupa, ele abre o sigilo bancário sem saber direito quais são as novas regras, ou se não tem regra alguma. Na mesa de cabeceira, um livrinho magro, uma vela pela metade, um par de óculos quebrados, um ventilador idem, calendário vencido na parede desbotada, uma tábua suja de cal no chão, um montinho de lixo no canto da parede com uma barata no topo, uma foto de campo de refugiados no Haiti, bolinhas de Natal saindo pela gaveta torta e uma coleira de cachorro.


Ambição

Vou leva-la ao restaurante para comer pizza. Sofrendo sobressaltos com o encargo de ser gentil, mas me sentindo mal com o caráter de certas pessoas como eu próprio, que não vejo a hora de ficar só, voltar ao meu estado normal de ermitão. Por que quero nesse exato momento de minha vida ser um sujeito sociável? Eu, que adotei um cão e no outro dia o pobre animal voltou ao canil? Eu, cuja única ambição é ler todos os livros possíveis, viver com intensidade a literatura universal antes que a doença terminal feche meus olhos.


Casal

José chegava de madrugada, geralmente bêbado. Josualdo sempre acordava primeiro, e despertava Marilu, que abria a porta e acomodava o ébrio no quartinho vazio da empregada. Sem sono, Josualdo ia ver mulheres nuas na Bandeirante, deitado no sofá. Altas horas, acordava José para entreter Marilu na cama. Os três formavam um casal.

Civismo no covil

Mão no peito, empertigado, o chefão canta o hino nacional diante da TV, no começo do jogo da seleção. “As pessoas de hoje em dia, que horror, não respeitam a pátria. E pensar que no meu tempo de criança, era obrigatório o hino e a saudação à bandeira”. O chefão olha para um dos bandidos presentes, que congela de medo. Aponta o dedo para o falsário, estuprador e ladrão: “Você, tem de baixar o cacete naqueles otários na frente das crianças? A partir de hoje, nada de horrores na hora do almoço, nas escolas, e também vamos respeitar o povo da Igreja Deus é Nosso, que é um povo nosso. Quem sair no tranco com as regras da irmandade vai se ver com Zelão, nosso ouvidor geral.” Pronto, estava criado o cargo de ombudsman do crime organizado.


Presente

Cada qual à sua maneira, todos somos irmãos. Sou uma mulher honesta, trabalhadora, pago impostos, sustento o Governo e seus larápios, mantenho a esperança de que a impunidade cesse, mas não gosto de sua cara sem-vergonha. Olhe só seu jeito de mulher falsa, certamente vive falando de mim, inveja. Mas, não se vive sem auto-estima. Gosto de ser brasileira, esse povo de cordialidade inata. Sim, confesso que depois fiquei com vergonha, com culpa. O que pode fazer uma compradora compulsiva que até para os seus inimigos gosta de adquirir pequenos presentes? Espero que aquela mulher medíocre aprecie as pantufas freudianas que comprei para ela.




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