terça-feira, 30 de junho de 2009

Ética dos excluídos

Uma certa matrona de Mari, que se diz educadora, useira e vezeira dos modos da nossa burguesia corrupta de 500 anos, disse certa vez em meu programa de rádio que "todos roubam, uns mais, outros menos, mas o roubo é lugar comum na sociedade brasileira". E assim parece ser o caráter do brasileiro classe média/merda, aquele que tem como princípio a lei de Gerson: levar vantagem em tudo. Mas nem só de ratos burgueses se faz o cotidiano da nossa sociedade desigual e safada. Tem ladrão que nunca se enquadra na lógica perversa do capitalismo dito selvagem; tem, ainda, ladrões românticos, os que roubam para dar aos pobres, o que "rouba, mas faz", o traficante do morro que protege a comunidade pobre e desamparada pelo Estado. No Brasil que exibe uma das piores taxas de concentração de riqueza e desigualdade do mundo, neste navio negreiro Brasil, a gente trata os do submundo com a brutalidade de sempre, mas eles, os chamados excluídos, às vezes, são capazes de ações comoventes. Daí, a gente que já se acostumou, em silêncio, a admitir sem indignação as humilhações desumanas dos pobres nos hospitais, a impunidade assegurada aos ricos, a discriminação contra as minorias, nós que já achamos natural o massacre imposto aos mais humildes pela política cada vez mais excludente dos governos no Brasil, de vez em quando, a gente sente vontade de tomar vergonha na cara e deixar de ser pernicioso, e olhar melhor para esse país e seu povo.

Tudo isso pra dizer que, um belo dia roubaram o gravador da Rádio Comunitária Araçá FM, de Mari, o nosso aparelhozinho que serve para as entrevistas de campo. O ladrão roubou o gravador do carro de um amigo, em um bairro "barra pesada". Eu fiz um apelo no meu programa diário, tratei o ladrão por Vossa Excelência, argumentei que o gravador pertencia à comunidade, como toda a rádio, e que, se ele fizesse o favor de devolver o aparelho, todos ficaríamos gratos pela gentileza. Quando saí do estúdio, um rapaz de aspecto "suspeito" esperava-me para devolver o gravador, pedir desculpas e sustentar que, se soubesse que era da rádio comunitária, não o teria roubado. Esse ato serviu como uma lição de ética, mas uma ética diferente, em confronto com a moral acanalhada burguesa. Com a palavra o filósofo inglês Bertrand Russel: "O liberalismo acha perfeitamente natural o patrão dizer ao empregado: 'morrerás à míngua'. Mas não concorda se o subordinado responder: 'morrerás antes à bala!'". Os sem terra famintos promovem saques e a gente se horroriza, o governo rouba milhões de pobres aposentados e a gente fica indiferente.

O ladrão que devolveu o gravador da rádio popular ainda acredita que os de sua classe podem ter voz algum dia, e a rádio popular pode ser esse canal. Por isso, ele sorri ao afirmar, meio envergonhado, que ouve a rádio todos os dias. Ele ainda sorri, mas qualquer dia vai começar a ranger os dentes. A rádio comunitária, como obra em aberto que é, pode ser - e de fato tem sido - o referencial de uma revolução silenciosa (nem tanto!) que os sem comunicação estão fazendo neste país, e que por sua natureza, vai além da comunicação pura e simples. Trata-se de construir e desconstruir discursos ideológicos e políticos. A verdadeira rádio comunitária está em permanente estado de construção/desconstrução no cotidiano social. Um dia os tubarões das rádios e TVs comerciais nos chamaram de "rádios piratas". Nós respondemos, taxativamente, que piratas são eles que correm atrás do ouro. Corremos, isso sim, atrás desse relacionamento, dessas trocas culturais, abrangendo a afetividade, o imaginário popular, o novo saber e sentir comunitário, que faz um ladrão devolver o produto do roubo, porque, de um jeito ou de outro, ele tem certa consciência de que a rádio comunitária é uma apropriação coletiva dos instrumentos da comunicação mediática. São as classes subalternas em luta pela superação do conflito entre a subalternidade e o poder conservador hegemônico da sociedade.

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