quinta-feira, 27 de maio de 2010
PROFISSÃO: COVEIRA
Depois de 20 anos sem qualquer modificação, a Classificação Brasileira de Ocupações foi atualizada oficialmente pelo Ministério do Trabalho. Profissões como a de coveiro, que recebeu o nome de sepultador e a das prostitutas que passaram a ser chamadas de profissionais do sexo foram formalmente regulamentadas. Mas nos concursos públicos continuam classificando esse profissional como coveiro. E as putas continuam sendo putas. Pior, sem direito a concurso.
Em recente concurso da Prefeitura de Itabaiana, uma moça foi classificada para exercer o cargo de coveira no cemitério da vila de Guarita, entre a sede do Município e Salgado de São Félix. Pelos meus cálculos, o último falecido a ser enterrado no cemitério local já deve ter virado cinzas. Pouco se morre na vilazinha quase deserta, e se nasce quase nada.
No silêncio do deserto que é a nossa Guarita, escuta-se a Palavra que fala mais alto, do tempo para nascer e tempo para morrer, tempo para plantar e tempo para colher. Só que o tempo naquelas paragens corre mais devagar, porque estão todos parados. O tempo ali se desloca mais lento, arrastado na temporalidade, no ritmo e ciclos das comunidades pequenas. Carlos Drummond de Andrade escreveu um poema chamado “Cidadezinha”, extremamente representativo do ritmo lento desses lugares.
O coveiro sempre foi uma figura meio que sinistra, lúgubre. Conheci um coveiro na minha cidade por nome Cavalo Azul. Exercia a sua profissão com um zelo invejável, só ultrapassado pelo meu primo Azarias, um apaixonado por cemitério. Tem gente que nasce pra isso. Acho que quando ele nasceu, a notícia saiu no obituário. Aposentou-se, mas se recusa a deixar o campo santo, onde dá plantão todos os dias.
Tantos anos vivendo dentro de um cemitério o fizeram ver o mundo com outros olhos. Entre túmulos, coroas de flores, velas e velórios, Azarias teve o cheiro da morte como seu perfume, os prantos e sussurros dos funerais serviam de pano de fundo para seus escritos filosóficos, que era um coveiro pensador. Esse sim, um vocacionado, doutor em morte sem nunca ter feito concurso.
Não dá pra ficar escolhendo trabalho hoje em dia. A menina que passou no concurso de coveira, certamente quando era criança e lhe perguntavam o que queria ser quando crescesse, é claro que ela nunca pensou em responder coveira. O trabalho é pesado, tem que ter bom preparo físico para carregar os caixões, colocar as lajes por cima dos jazigos. Acho que é por isso que não conheço nenhuma mulher coveira. Mas o ofício incomum tem o lado bom, que é trabalhar sem ninguém no seu pé e lidar diretamente com o público.
Como é conviver com “a velha Caetana” de forma usual, profissionalmente, com carteira assinada e livro de ponto? Esforçar-se-á para obter produtividade? É a forma como se encara a vida que faz também se encarar a morte. Então, como essa jovem profissional sepultadora vê o fenômeno do fim da vida? E a própria vida, que significado terá para a feliz ocupante do cargo de coveira? E a posse no cargo, terá festa, família presente, roupa nova?
Outra: será emotiva essa nossa coveira pioneira? Uma regra de etiqueta seguida pelos coveiros é não demonstrar emoção durante os sepultamentos. Mas há exceções, como quando um funcionário acaba sendo, ao mesmo tempo, responsável pelo sepultamento e amigo do defunto. Azarias enterrou a própria mãe de forma profissional, sem nenhuma emoção. O coveiro é igual a um médico na sala de cirurgia. É preciso controlar os sentimentos
Lembrei do coveiro no cemitério do “Bem Amado”, obra principal do corrupto Odorico Paraguaçu que nunca inaugurava por falta de defunto. Se depender de um extinto, nossa coveira vai levar uns tempos para ter seu primeiro desempenho na função.
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