Ao som da
encantadora toada de Cátia de França que em 1980, no LP “Estilhaço”, deslinda a
Lei de Lavoisier, tentarei compor aqui um brevíssimo tratado das equivalências
artísticas no campo do cordel brasileiro e paraibano. Na magistral cantiga, que
poderia estar entre as melhores letras da nossa MPB, Cátia explicita que “com o
vírus acontece / Uma coisa bem estranha / Se tira um pedaço dele / Outro pedaço
ele ganha / O pedaço extirpado / Outro vírus vai formar / Porque é da natureza
recomeçar".
No caso em estudo,
não se trata de micróbios parasitas. São dois poetas de cordel, do grupo
restrito dos excepcionais, os dois nascidos na cidade de Solânea, brejo da
Paraíba. Um deles é Joaquim Batista de Sena, um poeta que viveu em constante
luta contra as aparentes impossibilidades e construiu uma obra notável. Foi
idealizador e um dos criadores da Academia Brasileira de Cordel. Sua resenha
bibliográfica dá conta de que “era um grande poeta, conhecia bem os costumes, a
fauna, a flora e a geografia nordestina, motivo pelo qual seus romances eram
ricos em descrições dessa natureza. Pode-se dizer que, com a sua morte,
fechou-se um ciclo na poesia popular nordestina e o gênero ‘romance’ perdeu um
de seus mais importantes poetas”. Morreu em 1993 na cidade de Fortaleza, Ceará.
O outro poeta
solanense é da contemporaneidade. Alexandre Eduardo de Araújo respirou pela
primeira vez o oxigênio afável tropical de sua Solânea em 1976. Atualmente é
professor da Universidade Federal da Paraíba, doutor em Agronomia e mestre em
Agroecologia. Conforme a obra “Na memória da tradição – Fontes de informação em
literatura de cordel”, dos professores Sale Mário Gaudêncio, Elizabeth Baltar,
Izabel França, Eveline Filgueiras e Fabiana França, “Joaquim Batista de Sena
estudou apenas três meses, para aprender o ABC, mas jamais escreveu palavras
erradas ou inadequadas nos seus ‘romances’. Foi considerado um dos mais
importantes poetas da Literatura de Cordel em todos os tempos. Autodidata,
adquiriu vasto conhecimento sobre cultura popular e era um defensor
intransigente da Poesia Popular Nordestina”. Um doutor e um autodidata cultivando
com talento e destreza esse vício que é compor versos da “poesia de gabinete”,
expressão usada pelos próprios artistas da palavra nordestina para distinguir o
cordelista do poeta repentista.
Em comum, a terra
natal e a inquietação pela preservação da fauna e flora, o resguardo desses
recursos naturais inventariados em poética de sonho e peleja. Por isso a obra
desses dois poetas anda pelo ar, nos ventos alísios, nos planaltos, chapadas e
serras da cordilheira Borborema, nos cactos e bromélias, principalmente
bromélias, gênero botânico ligado ao agave, planta da qual se produz o sisal
que é a cepa da palavra Solânea. Não seria incerto reconhecer que, nos segredos
do conceito filosófico do renascimento, esse poeta doutor Alexandre Eduardo de
Araújo e sua poesia das plantas, minerais e animais do brejo sejam a
transmigração da alma do cordelista solanense Joaquim Batista de Sena. Minha
concepção como livre pensador não acolhe esta hipótese religiosa de que a
essência não física de um ser vivo inicia uma nova vida em uma forma física ou
corpo diferente após a morte biológica. Entretanto, até a raiz da alma, no
sentido do pensamento e consciência, os dois cordelistas da terra de Greginaldo
Medeiros, outro conhecido vate popular, se abraçam e compactuam com o mesmo
tema e são irmãos na origem e na constituição e compreensão do ato de amar seu
espaço e sua pátria natural.
Alexandre Eduardo
de Araújo recebeu o Prêmio Elo Cidadão por quatro anos: em 2009, 2010, 2014 e
2020, nas áreas de meio ambiente e cultura. Também foi ganhador do Prêmio
"Tancredo de Carvalho" de Literatura de Cordel, financiado pela Lei Aldir
Blanc 2020. Escreveu o folheto “Protegendo o ambiente, Solânea está mais
bonita”, cujo tema, gênero literário e cidade a Joaquim de Sena Batista
pertenciam e pertencem. Um dá continuidade ao labor artístico e ideológico do
outro. “Porque é da natureza recomeçar”. Sempre.
Emocionante!
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