sábado, 22 de outubro de 2022

Poeta em riba do caminhão da poética coletiva

 


Quando o Ministério da Educação se preocupava com a qualificação da juventude pela instrução, através da literatura secular e laica, publicou seleta de crônicas onde reiterava que o mundo é feito de coisas que vemos e que não vemos. O que não enxergamos com os olhos está nos livros. O planeta formidável da criatividade humana pulsa secretamente no meio das letras. É só pegar um livro e descodificar o maravilhoso universo da literatura. “Quem não lê, só vê uma parte das coisas do mundo. E não consegue conhecer tudo”. Hoje em dia, as plataformas das mídias sociais se encarregam de fornecer uma leitura raquítica, deformada e limitada, servindo mais como instrumento de propaganda por inimigos da democracia, da racionalidade, da ciência e da própria leitura.

Já dizia meu compadre Geraldo Caranguejo: “Quem não come, bebe o caldo”. O poeta declamador é o arauto das peripécias da imaginação, o repórter do seu universo, o cara que escreve seu poema narrativo, memoriza e trabalha o conteúdo para adquirir o tom certo, a fim de recitar sua obra para seus ouvintes. Declamar é uma arte. Em uma sociedade sem leitura, a versão lúdica e poética da realidade é levada pelos poetas declamadores. Esses artistas furam a bolha da alienação.

A maioria dos meus confrades e confreiras da Academia de Cordel do Vale do Paraíba gosta de recitar seus versos em público. Temos o poeta ator Sander Lee, orador de voz possante e gestos teatrais que encantam as plateias. Comadre Claudete Gomes, outra atriz, gosta de sair de suas obrigações de professora comum para dar aulas de encantamento nas suas turmas, lendo e interpretando folhetos de cordel.  O mesmo se dá com os professores Manoel Belisário, Pádua El Gorrion, Antonio Marcos Monteiro, Raniery Abrantes, Thiago Alves, Aninha Venâncio e Bento Júnior, mestres da ensinança ordinária em combinação com as lições de poesia e fascínio do gênero cordel.

O meu herói dessa categoria de menestrel, no entanto, tem apenas 24 anos, anda com chapéu de couro na cabeça, uma bolsa a tiracolo onde carrega seus livros e folhetos, razoavelmente caririzeiro, considerando-se universal, porque nasceu em Campina Grande, mas recebeu régua e compasso na cidade de Livramento na Paraíba, onde foi batizado com o nome de José Ferreira de Lima Neto, filho de Ferreirinha, apologista de cantoria de viola e responsável pelo micróbio da poesia popular herdado pelo filho, Neto Ferreira. O bardo fez Filosofia na Universidade Estadual da Paraíba, de onde partiu para desenvolver pesquisas nos temas da literatura popular nordestina e da filosofia da arte estética. Nas horas vagas, declama seus versos e fala sobre o cearense Patativa do Assaré, Leonardo Bastião, os irmãos Bernardino e Olívio do Livramento, além dos irmãos Batista, seus ídolos no panteão dos trovadores nordestinos.  

Neto Ferreira fez pós graduação em estudos sobre patrimônio cultural a partir de Livramento. Para ele, o patrimônio imaterial deveria ser melhor avaliado e reconhecido. Um poeta declamador sai de sua cidade, viaja por sua conta para animar festas culturais nas quebradas do mundaréu sertanejo, e o máximo que ganha é o aplauso da plateia e um prato de sopa com pão seco, pago pela prefeitura. Neto Ferreira é desses que não têm cerimônia. Recita poesia em vaquejada, festa de mãe, cavalgada, escolas, cabarés de ponta de rua, nas praças e feiras de suas quebradas. Sobe na carroceira do caminhão, canta em comício, festa de rua e até em velório. Diante do espetáculo que a cultura popular proporciona, o jovem artista vive para divulgar os encantos poéticos neste mundo cada vez mais desfavorável à literatura escrita.

O moço poeta Neto Ferreira certamente um dia terá seu nome consagrado na história cultural de sua região, nem que seja pela persistência em levar poesia às massas. O apóstolo Paulo, em Atos 17:28, cita um poeta do seu tempo, chamado Arato, originário de Soli, uma cidade pertencente à Cilicia, onde Paulo nascera, que viveu por volta do século III a.C. Arato ganhou fama por sua coragem em pregar o evangelho da estética das palavras nas fronteiras daquele mundo antigo. Era um poeta declamador, como Neto Ferreira, e levava em seu alforje de caçador de almas líricas os escritos de um mundo encantado.

 

 

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