quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Bem aventurados os semeadores livres

 


Sobre a parábola do semeador que saiu para plantar. Contrariando as recomendações dos técnicos em semeadura, o agricultor da alegoria bíblica não preparou o solo nem irrigou o terreno, muito menos ligou pra o manejo e controle das pragas e plantas daninhas. “Enquanto semeava, algumas sementes caíram à beira do caminho, e os pássaros vieram e as comeram. Outras sementes caíram em terreno pedregoso, onde não havia muita terra. As sementes logo brotaram, porque a terra não era profunda. Mas, quando o sol apareceu, as plantas ficaram queimadas e secaram, porque não tinham raiz. Outras sementes caíram no meio dos espinhos. Os espinhos cresceram e sufocaram as plantas. Outras sementes, porém, caíram em terra boa, e produziram à base de cem, de sessenta e de trinta frutos por semente. Quem tem ouvidos, ouça!”, doutrinou Jesus. Então, um discípulo bolchevique questionou a história, acusando o sistema de impedir as ações voltadas para assegurar a distribuição justa das terras, garantindo boa colheita e controle da produção pelos trabalhadores do campo. O Mestre esclareceu que à pessoa que tem será dado ainda mais, e terá em abundância; mas, à pessoa que não tem será tirado até o pouco que tem”. Esclarecida essa premissa, baseada na propriedade privada dos meios de produção com seus respectivos lucros e acumulação de riqueza, o Senhor orientou seus seguidores a praticar a pesca recreativa, de caráter científico, comercial, esportivo ou de subsistência, ensinando-lhes alguns truques de multiplicação dos peixes, milagre também conhecido como farsa ideológica por alguns hereges, porque, conforme esses blasfemos, a lição a ser tirada do episódio é de que o povo tem realmente muito pouco, insuficiente para sua sobrevivência, mas quando entregam suas vidas aos cuidados de um mito ou autocrata, o pouco se torna muito e serve para alimentar as multidões.

Nada disso me veio à mente quando passei a morar no cocuruto de um monte, na aba da serra da Borborema, em uma casinha amarela rodeada de mato, habitação da roça com amplo quintal, sem que eu tenha jamais praticado jardinagem nem cultivação de qualquer natureza. Semelhante ao lavrador inábil da alegoria bíblica, passei a ocupar o tempo me dedicando à preparação do solo, ao plantio e expectativa da colheita, sem nenhum método ou técnica. Fiz como o narrador do livro “O perigo da semente”, de Ricardo Philippsen, que deixava as plantas do quintal desenvolverem-se espontaneamente e rematar seu ciclo de vida sem intervenção do jardineiro. Nada de poda, nem molhar a horta, ou transportar os vasinhos para a sombra, muito menos disciplinar as mudas em canteiros orgânicos. Liberdade para as sementes! Voo livre para os passarinhos soltarem sementes desconhecidas que germinam sem programação nem identificação daqueles vegetais vindos de onde a passarada incuba seus ovos e começa a revoada dos sabiás, por exemplo, com seu canto maravilhoso e variações melódicas que os fazem regurgitar as sementes silvestres de canelas, camboatás, araçás amarelos, babosas brancas, cafés de bugre, goiabas e frutas da condessa. O único predador na área é uma gata que tem medo da única galinha, ave que garante a segurança dos passarinhos, ratos, víboras, abelhas, marimbondos, borboletas, calangos e lagartixas.

Algumas sementes vindas da feira agroecológica do campus da Universidade Federal da Paraíba, em Bananeiras, foram enterradas no pé do muro, sem sucesso. Poucas germinaram. Transferidas para vasos, foram doadas aos vizinhos. O potencial produtivo do quintal é mesmo das sementes selvagens, que simplesmente surpreendem ao aparecer de repente, desabrochando no meio do mato indisciplinado. As plantinhas indomáveis se espalham pelo chão, começam a dar frutos. O jerimum subiu no muro baixo, oferecendo-se aos passantes no terreiro. A goiabeira simplesmente se doando para quem passa. O semeador que sou eu, pensando aqui na utopia. De grão em grão, no devaneio eu retribuo as dádivas da natureza em um milagre humanista, diante daquela produção sem rédea ou domínio, um prodígio de frutos e legumes com o excedente se espalhando no solo de barro vermelho, as ramas entrando de porta a dentro nas casinhas humildes, e como no livro, aquela fartura reuniria os irmãos para o ritual da saciedade, entrariam “em um ciclo de retribuição e gentileza”, enterrando a miséria e abolindo a fome.

Uma em cada três pessoas no mundo passa fome. Desadormecendo, reparo que meu quintal, minha horta não tem legumes superabundantes. Uma flor nasce no canto do muro. É a tulipa, plantinha símbolo do agronegócio. Leio na revista Tricontinental: “As pessoas passam fome não porque somos muitos, mas porque os camponeses produtores de alimentos em todo o mundo estão sendo expulsos de suas terras pelo agronegócio e empurrados para as favelas das cidades, onde o acesso ao sustento depende da renda monetária. Como resultado, bilhões de pessoas não têm como comprar comida”.  

 

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