sábado, 26 de março de 2016


As meninas de Itabaiana

Viajo para ver, ouvir, rir e rever, constatar que passam os estilos, o tempo, enfim, tudo. O Nordeste, por onde caminhei e caminho, tem muito de um tudo desse Brasil.
De São Paulo para Recife, pesquisando, vou para João Pessoa, e de lá, indo para Campina Grande, vou para Pilar e entro em Itabaiana, cidade importante na era dos trilhos. Quero rever a estação de trem, famosa no começo dos anos passados, ver a cidade em que Zé Lins estudou e assim sentir o cheiro de terra, salpicos do rio Paraíba, ora enchendo com as chuvas.
Com o amigo Anselmo, chego em Itabaiana, vamos à casa das meninas, como assim são chamadas na cidade: “ii” e “nenén”, digo, Ivone e Margarida. Lá as encontro como que dormindo sobre o tempo, com uma lisura de humanidade  que pouco se vê, muito pouco. Eram três as filhas de Nazinha – irmãs que roeram e roem o tempo: uma faleceu, professora Clotilde, chamada Tide; ficaram as duas das pontas, Margarida (nenén), a mais velha, e a mais nova, Ivone (ii). São duas mulheres de aço que resistem ao tempo: moram sozinhas, solteiras; a família se resume a primos – Anselmo é um deles. Sentados, na cozinha, tomamos café e falamos sobre a vida e, dentro disso, dos poetas, do pastoril, do Colégio do Prof. Maciel, em que Zé Lins do Rego estudou e do qual Tide foi diretora, das festas de fim de ano, dos picolés de D. Dozinha.
O tempo passou, mas o mascaramento da vida permanece, diz ii, “os tempos mudaram muito, dá um enjoo grande, mas a vida é assim, temos que aguentar como o tempo é, mas reclamar não custa nada… a televisão não me engana mais, melhor ouvir os versos de cordel, e ver o menino assaltando outras velhas e fechar a janela e engolir o susto”. Reclama das plantações de grama, ocupando o pasto dos bois e sendo vendidas para os campos de futebol, verde mentiroso. Assim diz ii, e olha para nós, fita meus óculos e diz: “Bonito, parece os óculos de antigamente”; e prossegue: “Você é jornalista, né? Leu muito, então conhece Jeca Tatu?” Eu respondo: “Faz tempo”, e ela: “Leia, ainda tenho aqui na minha estante empoeirado, era de Tide, mas li outros, os poetas do cordel, as novenas, os almanaques, Zé da Luz.”
O caso levou-me para Lobato no seu Jeca, em que mostra um país dividido, por tanto e quanto, por um lado travestido de chique, de bacana e rico e, no entanto…
“Nossas casas não denunciam o país. Mentem à terra, ao passado, à raça, à alma, ao coração. Mentem em cal, areia e gesso, e agora, para maior duração da mentira, começam a mentir em cimento armado. Dentro dum salão Luís XV somos uma mentira com o rabo de fora. Porque por mais que nos falsifiquemos e nos estilizemos à francesa, Tomé de Sousa e os quatrocentos degredados berram no nosso sangue; Fernão Dias geme; Tibiriçá pinoteia e Henrique Dias revê o seu pigmentozinho de contribuição.”
(Monteiro Lobato, em Ideias de Jeca Tatu)

Melhor olhar o coração de Jesus, de nenén, em Itabaiana, tomando o café de Ivone.

*É paraibano, mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária em universidades privadas e consultor editorial da área de Literatura, além de contista e poeta com livros publicados (paulovasconcelos@brasileiros.com.br).

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