sexta-feira, 10 de abril de 2020

Parceria na quarentena

Etiene e Ravi, meu neto e sobrinho dela 

Quando minha única filha nasceu em Itabaiana, fiz um soneto e publiquei no meu jornal Alvorada. Um poema de amador é matéria defectível, debilitada tentativa de marcar a presença de uma criatura há muito esperada. Com filhos, a gente vislumbra alguma forma de transcendência no ato de contribuir para a formação de uma nova vida. Até permite aventuras literárias ordinárias, mas sinceras dentro da formatação ideológica do jovem pai. Assim nasceu meu soneto para Etiene Mozart que passa bem, obrigado. Hoje é uma profissional de relações públicas, tendendo ao pensamento progressista e correspondendo ao último verso do soneto: “Verás que ninguém é senhor de ninguém”.

Sim, meus versinhos sofrem de insuficiência literária, mas já tive poemas musicados por Beto Cajá, Orlando Otávio, Arnaud Neto, Rubens do Valle, Hugo Tavares e Luiz Carlos Otávio. Como admirador do poeta e grande musicista Bebé de Natércio, meu sonho de consumo sempre foi o de ter um poema harmonizado por Bebé e sua inventiva cabeça de compositor. Descaradamente, ofereci a ele meu livro “Laranja romã”, na vã expectação de que o hábil poeta e cantador enfim tomaria a iniciativa de melodiar um poema do velho Fábio Mozart às suas ordens. Tem aquela conversa de que laranja madura na beira da estrada ta bichada ou tem marimbondo no pé. Minha laranja romã ofertada não cativou nem inspirou o mestre Bebé que tinha coisas mais importantes para fazer, vide seu novo trabalho “Sambas do poeta”, uma obra prima do gênero.

Então veio a hecatombe. Um vírus oculto mandou todo mundo pra casa e parou a vida em comunidade na terra. Vimo-nos na situação de ter que nos reinventar em isolamento, idealizar formas de passar o tempo, o enjoo e o cansaço da prisão domiciliar. Foi aí que aproveitei a anomalia e voltei a cobrar do Bebé: “poeta, aproveite as horas vagas e dê um trato no poema, vista de música meu discurso antes que o corona me leve para o cosmos”. Dramatizei um pouco. E ele, na bucha: “mande um poema”. Em 10 minutos Bebé remeteu para meu e-mail a composição em estado bruto.  

Estou impedido de revelar o preço dessa parceria por força de cláusula contratual, mas adianto que advirá fortuna e prestígio para meu compadre Bebé de Natércio através da mediação da pitonisa Madame Preciosa. Madame prevê muitos anos de vida para Bebé, que ele enfim se conciliará com os crentes depois da grande calamidade, conforme o vaticínio de Raulzito: “No fim dos tempos, o bem e o mal andarão de braços dados sobre as cinzas da cidade”.


 SONETO À FILHA RECÉM NASCIDA

(Para Etiene Mozart)

Filha também dessa neurastenia,
Parte de mim, um pobre combatente,
Verás, decerto, a mesma luz que um dia
Guiou teu pai em revolta latente.

Espero enormemente da criança
Que és, ver surgir mais um infante,
Da escuridão fazendo uma esperança,
Da fé comum uma lança cortante.

Sê forte, sê livre e será possível
Viver e lutar com dignidade,
Sonhar com a aurora, que o dia aí vem.

E quando surgir a luz inconfundível,
Mesmo relutante, da tal liberdade,
Verás que NINGUÉM É SENHOR DE NINGUÉM.











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