terça-feira, 8 de outubro de 2019

Xaréu, o último boêmio





Xaréu é um peixe do Nordeste. Quando é pescado, o xaréu ronqueja uma canção de protesto, atritando os ossos da faringe. Talvez por não ter uma voz muito suave, Xaréu ficou conhecido por esse epíteto pisciano. O violonista Xaréu foi o Yamandú Costa de nossa geração na cidade Itabaiana do Norte, agreste da Paraíba. Aprendeu a tocar o instrumento mais tocado no mundo, o violão, adaptando a versatilidade harmônica e melódica do “velho amigo pinho” ao seu jeito particular de acompanhamento e solo. Perito na arte de tirar som da viola, Xaréu também carregava o dom de fazer amigos. Foi um artista marcante na terra de grandes músicos como Sivuca e Severino Rangel que é o Ratinho do “Saxofone por que choras”.

Pratiquei o pecado da omissão quando deixei de citar Xaréu no meu livro “Artistas de Itabaiana”. O desmemoriamento foi tão grave que deixei também de fora Vladimir Carvalho, ícone do cinema nacional. O mestre Xaréu ensinou muita gente a tocar violão. Gostava de dar concertos na difusora de Manoel Calça Preta no bairro do Cochila, executando velhas valsas de Dilermando Reis nas noites enluaradas do bairro proletário. Xaréu era uma pessoa generosa, como todo mestre da cultura popular, porque ele tinha consciência da importância de disseminar sua arte. Lindo era ver tocando juntos os mestres Biu da Rabeca e Xaréu, o mais das vezes acompanhados por Artur Fumaça, outra cobra criada no violão da terra de Sivuca. No pandeiro, pulsava o ritmo afro do compadre Chico do Doce e seus compassos do candomblé. Essas expressões tradicionais de arte quase extintas em nossos interiores, engolidos pelas baboseiras da indústria cultural.

O Google me ensina que “xaréu” também é um ritmo tradicional do Recôncavo baiano, “canto de puxada de rede”. Não deu pra entender se a rede se refere ao instrumento de pesca ou o apetrecho de dormir, tão caro aos baianos. Seja como for, a matéria garante que o “xaréu” reúne composições musicais que fogem do lugar comum, “atiçando o imaginário do público”.

Quero compor uma biografia mais significativa do mestre “Xaréu”, ouvir os últimos boêmios que lembram dele e do seu violão vibrante, para uma segunda edição do “Artistas de Itabaiana”. Sei que foi uma referência musical e boêmia de Itabaiana dos anos 60/70. Reza a lenda que Xaréu tocou a noite toda no cabaré do Carretel, acompanhando Nelson Gonçalves. O dono do bar pegou o autógrafo do cara que foi uma das vozes mais populares do Brasil. Nelson assinou no violão de Xaréu. Zé Bodega, proprietário do boteco, pendurou essa relíquia na parede e lá permaneceu enquanto o taverneiro esteve batendo o coração. Meu pai foi testemunha dessa farra histórica. Ele comprovava a fama de Nelson Gonçalves, “um cantor que ficava melhor depois do quarto uísque”, quando o cançonetista se desaperta de sua timidez e o romantismo baixa no centro.   

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