sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Bula de remédio



Lendo “Dentes ao sol”, de Ignácio de Loyola Brandão: “As pessoas andam descuidadas, não leem mais bula de remédio. É um perigo muito grande. Uma displicência tão mortal que vou escrever uma carta ao Flávio Andrade sugerindo que ele proponha uma lei na Câmara. Não sei que tipo de lei. O Flávio que resolva, ele entende disso. Deve ser qualquer decreto que comece na escola. Ensinando a ler bulas, coisa nada fácil. Elas têm uma linguagem especial, uma espécie de código. Há os nomes científicos, as quantidades, a posologia, as indicações e contraindicações, os efeitos colaterais. Se a gente tivesse o hábito de ler bulas desde criança, tanto mal podia ser evitado. É uma coisa que me diverte, um emprego que gostaria de ter. Escrever bulas”.

Gostei da ideia e passei a reescrever as bulas. Pegue um produto qualquer, digamos, cloridrato de fexofenadina, eu começaria examinando logo o nome do princípio ativo. Esse tal cloridrato lembra o quê? Fexofenadina poderia ser uma mulher, dona de uma grandeza paradoxal que reúne absoluta falta de juízo e horror à mediocridade. Ninguém que se chame Fexofenadina é uma pessoal normal. Dada o efeito antihistamínico, essa moça não tem alergia a nada. Sua função reguladora na fisiologia intestinal preserva-a do mau hábito de espirrar, evacuar e tossir sem motivo aparente. Nada de  cólicas abdominais, dor de estômago, diarreiaflatulência, prurido e urticáriadores de cabeçaasma e dificuldade para respirar, nariz entupido, irritação e sensação de coceira nos olhos, taquicardia e tonturas. Dona Fexofenadina é uma pessoa quase perfeita, se esquecermos seu nome esquisito. Todos têm altos e baixos, mas Fexofenadina está acima da média. Enfim, uma mulher sem intolerância.

A composição do produto leva excipientes de celulose, ferro vermelho, ferro amarelo e água purificada, perdida durante o processo. Quer dizer, é madeira, ferro e água benta que jamais chegará ao céu porque “foi perdida durante o processo”. Juro que não entendi que processo seria este. Fico a matutar com minhas alergias e idiossincrasias: por que usar água purificada se ela será, ou foi antecipadamente perdida durante o processo? E que processo seria esse? Na advertência da bula, um aviso quase esclarecedor: “Recomenda-se o uso do medicamento ingerido com água, evitando tomar junto com suco de frutas.”  A água deve servir para substituir a outra, pura, que foi “perdida durante o processo”.

O que fazer em caso de ingestão maior que a dose recomendada? A bula confessa que tem informações limitadas sobre esse pequeno e inesperado acidente. E ainda revela, rigorosamente dentro da ética: “ainda não estabelecemos qual dose máxima tolerada pelos pacientes”. Em outras palavras, somos todos cobaias da tal Fexofenadina. Sem estabelecer a dose máxima, você vai tomando suas miligramas até aparecer um “evento adverso”, que pode ser um desencarne. Aí tudo bem, porque também não há estudos dos efeitos da Fexofenadina em defuntos.

Quem não deve usar esse medicamento? Todos os que fumam, porque o fumo acelera o fígado e as enzimas que metabolizam as substâncias. Os que não fumam, porque não conhecem as propriedades químicas dos fármacos e as bulas não esclarecem quase nada. Podem rolar interações perigosíssimas. É expressamente recomendável que você não se intoxique, pare de se sentir clinicamente ou psicologicamente doente. Jamais confie em dona Fexofenadina e outras malandragens da indústria dos remédios. Há 50 anos Aldous Huxley já disse que “a investigação médica está fazendo um progresso tão extraordinário, que em breve nenhum de nós ficará bem.” E o que fazer se cair enfermo? Parta para terapias alternativas tipo acupuntura, reflexoterapia e, para os mais espiritualizados, a cura pela fé. Se nada der resultado, deixe se apagar a chama com dignidade e sem substâncias tóxicas nas veias. Porque, quem acha que essa vida é fácil nasceu no planeta errado.







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