Lendo “Dentes ao sol”, de
Ignácio de Loyola Brandão: “As pessoas andam descuidadas, não leem mais bula de
remédio. É um perigo muito grande. Uma displicência tão mortal que vou escrever
uma carta ao Flávio Andrade sugerindo que ele proponha uma lei na Câmara. Não
sei que tipo de lei. O Flávio que resolva, ele entende disso. Deve ser qualquer
decreto que comece na escola. Ensinando a ler bulas, coisa nada fácil. Elas têm
uma linguagem especial, uma espécie de código. Há os nomes científicos, as
quantidades, a posologia, as indicações e contraindicações, os efeitos
colaterais. Se a gente tivesse o hábito de ler bulas desde criança, tanto mal
podia ser evitado. É uma coisa que me diverte, um emprego que gostaria de ter.
Escrever bulas”.
Gostei da ideia e passei a
reescrever as bulas. Pegue um produto qualquer, digamos, cloridrato de
fexofenadina, eu começaria examinando logo o nome do princípio ativo. Esse tal
cloridrato lembra o quê? Fexofenadina poderia ser uma mulher, dona de uma
grandeza paradoxal que reúne absoluta falta de juízo e horror à mediocridade.
Ninguém que se chame Fexofenadina é uma pessoal normal. Dada o efeito
antihistamínico, essa moça não tem alergia a nada. Sua função reguladora na fisiologia intestinal preserva-a do
mau hábito de espirrar, evacuar e tossir sem motivo aparente. Nada de cólicas
abdominais, dor de estômago, diarreia, flatulência, prurido e urticária, dores de cabeça, asma e dificuldade
para respirar, nariz entupido, irritação e sensação de coceira nos olhos,
taquicardia e tonturas. Dona Fexofenadina é uma pessoa quase perfeita, se esquecermos seu nome
esquisito. Todos têm altos e baixos, mas Fexofenadina está acima da média.
Enfim, uma mulher sem intolerância.
A composição do produto leva excipientes de
celulose, ferro vermelho, ferro amarelo e água purificada, perdida durante o
processo. Quer dizer, é madeira, ferro e água benta que jamais chegará ao céu
porque “foi perdida durante o processo”. Juro que não entendi que processo
seria este. Fico a matutar com minhas alergias e idiossincrasias: por que usar
água purificada se ela será, ou foi antecipadamente perdida durante o processo?
E que processo seria esse? Na advertência da bula, um aviso quase esclarecedor:
“Recomenda-se o uso do medicamento ingerido com água, evitando tomar junto com
suco de frutas.” A água deve servir para
substituir a outra, pura, que foi “perdida durante o processo”.
O que fazer em caso de ingestão maior que a dose
recomendada? A bula confessa que tem informações limitadas sobre esse pequeno e
inesperado acidente. E ainda revela, rigorosamente dentro da ética: “ainda não
estabelecemos qual dose máxima tolerada pelos pacientes”. Em outras palavras,
somos todos cobaias da tal Fexofenadina. Sem estabelecer a dose máxima, você
vai tomando suas miligramas até aparecer um “evento adverso”, que pode ser um desencarne.
Aí tudo bem, porque também não há estudos dos efeitos da Fexofenadina em
defuntos.
Quem não deve usar esse medicamento? Todos os que fumam,
porque o fumo acelera o fígado e as enzimas que metabolizam as substâncias. Os
que não fumam, porque não conhecem as propriedades químicas dos fármacos e as
bulas não esclarecem quase nada. Podem rolar interações perigosíssimas. É
expressamente recomendável que você não se intoxique, pare de se sentir
clinicamente ou psicologicamente doente. Jamais confie em dona Fexofenadina e
outras malandragens da indústria dos remédios. Há
50 anos Aldous Huxley já disse que “a investigação médica está
fazendo um progresso tão extraordinário, que em breve nenhum de nós ficará
bem.” E o que fazer se cair enfermo? Parta para terapias alternativas tipo
acupuntura, reflexoterapia e, para os mais espiritualizados, a cura pela fé. Se
nada der resultado, deixe se apagar a chama com dignidade e sem substâncias
tóxicas nas veias. Porque, quem acha que essa vida é fácil nasceu no planeta
errado.
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