quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Crônica do cara que perdeu o dinheiro da feira


Não tem braveza e valentia que não se acabe quando a gente está sem dinheiro. Nesse mundo do lucro, da vantagem, do valor monetário acima de tudo, “só se vale pelo que se tem”. “Há o tempo de viver e há o tempo de morrer”. No meio, há o tempo de se ficar liso. Minha pobreza de aposentado não me permite grandes manobras de consumo. Meus haveres monetários são mais contados do que os cobres do filósofo Karl Max, o cara que fundamentou a filosófica comunista. Em carta ao Engels, ele chora: “Minha mulher está doente com uma espécie de febre nervosa. Não posso chamar o médico por falta de dinheiro para os remédios. Há oito dias que alimento minha família unicamente com pão e babata, e não sei se vou poder comprar pão e batata hoje.”

Não estou nessas privações do pai do comunismo, mas é aquele queixume de sempre do cara aposentado que não tem outra fonte de renda. Porém, e sempre há um porém, essa exiguidade de recursos pode acabar de forma muito frutuosa na probabilidade de eu ser um gênio prestes a construir minha obra prima. Porque tem a teoria de que os grandes criadores só foram capazes de conceber sua glória artística porque passaram muitas provações no plano material. Cervantes só escreveu “Dom Quixote” porque vivia na miséria e depois de passar anos na cadeia. O indivíduo rico, que não tem preocupações com nada, nunca terá inspiração. Quem não sofreu no couro a aspereza da vida, não será jamais eterno no panteão dos capas pretas das artes.

Toda essa conversa pra relatar aqui o pequeno desastre de hoje pela manhã. Às cinco horas, saio em minha byke para o passeio matinal, levando no tênis duas notas de dois reais para comprar maçãs no retorno, ao passar no mercado. Depois de gozar os prazeres de rodar cinco vezes a lagoa, acumulando dores lombares e espasmos nos joelhos, além de câimbras e dormência nos países baixos, descubro que perdi os quatro reais. Volto para casa sem a luz que irradia dos felizes, mais apagado do que a tocha das olimpíadas dos mofinos, os desgostosos competidores batidos, os derrotados, os prostrados e exaustos medalhas de latão, os que chegaram por último. Dessas figuras ninguém fala. Não tem mérito algum a ser reconhecido. Foram apenas escadas para os vencedores.

Desculpem, estou tergiversando. O que eu quero dizer é que quando se perde o dinheiro da feira, dá-se uma ligeira conturbação na cabeça conservadora. A gente fica puto. Irritado e indignado, o sujeito acha que sempre estará condenado a ser escravo. Todos os sentimentos de decepção vêm à tona por causa do extravio de quatro irrelevantes reais. E tome filosofia de boteco rodando na mente do provecto ciclista: os homens são regidos pela lei da necessidade, e a liberdade não passa de uma ilusão.

Quando você dá aquela topada na quina do pé da mesa, um palavrão é muito mais eficiente do que qualquer analgésico. No tocante à perda dos vinténs essenciais, aceitei o acaso e desejei francamente que o dinheiro seja encontrado por alguém que necessite mais do que eu. Como a vida é um produto das circunstâncias, fui andando e pensando que aquela mulher gordinha que caminhava com dificuldade no calçadão topa com as notas, apanha, na volta para casa joga na milhar do porco, ganha uma boa bolada, passa a achar o mundo mais aconchegante e equitativo, paga a operação do marido, compra roupas para o neto, quita a conta da quitanda e abre um largo sorriso quando eu chego ao consultório do médico. Ela, por acaso, é a enfermeira responsável pelos procedimentos básicos de uma operação que eu iria fazer. Graças ao seu estado de espírito, fico achando que a vida seja apenas a simplicidade das trocas, mesmo involuntárias, de pequenos/grandes dados aleatórios. E sinto paz. Que não tem preço. Ou pode custar apenas quatro reais que, sabe-se lá por quais desígnios, seriam investidos na compra de frutas contaminadas cuja putrefação me levaria à morte. 

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