Eu lançando meu livro "Laranja romã" na Rádio Comunitária Zumbi, com Ari França, Ricardson Dias e Dalmo Oliveira |
Você sabe que numa guerra, há
várias frentes de batalha. É preciso ter uma tática para cada uma delas. Na
guerra contra a estupidez humana, você tem a música, a leitura e o bom cinema.
Há forte declínio de leitura de bons livros por parte da juventude, em razão
também do uso elevado do leque de mídias eletrônicas pela moçada. Hoje, garoto
de 9 anos não larga seu tablet, o que se deduz que em meio século o livro
desaparecerá como modalidade de lazer. Lutando contra a desleitura, venho
tentando promover encontros de estudantes com os livros em nossa biblioteca
comunitária colaborativa, o projeto Biblioteca Viva, a muito custo mantida pela
Sociedade Cultural Poeta Zé da Luz e Academia de Cordel do Vale do Paraíba.
Na cidade de Mari, montei a
barrada de troca de livros na velha estação ferroviária onde encerrei minha
vida profissional e hoje abriga a rádio comunitária Araçá. A própria emissora
popular divulga o projeto e convoca as pessoas para visitar o ponto de leitura
e troca de livros. O professor e radialista João Anderson é um dos entusiastas
desta ação de incentivo à leitura, ele mesmo doador de livros. “Juntei meus
livros já lidos e troquei por outros na Biblioteca Viva, e faço questão de
espalhar a ideia nas minhas redes sociais porque ler é muito importante para o
desenvolvimento das pessoas”, disse ele. Outra doadora, Ana Almeida, também
escolheu exemplares do seu acervo para a estante do projeto, assim como Fábio
Cruz, Diretor de Cultura da cidade. Muita gente botando seus livros usados ao
alcance de qualquer pessoa, no ponto de trocas do projeto.
O coordenador do projeto em
Mari é o também radialista Ricardo Alves, sócio correspondente da Sociedade
Cultural Poeta Zé da Luz, entidade que foi primordial na batalha pela concessão
do prédio histórico da estação ferroviária para sediar a rádio Araçá. Sobre
este assunto, estou redigindo um folheto para exaltar os maravilhosos seres
humanos que me ajudaram a fundar a rádio, o grupo teatral, a associação de
bairro e o time de futebol, nos doze anos em que interagi com as mais diversas
classes sociais da antiga vila de Araçá. Esse projeto Biblioteca Viva é uma
iniciativa nossa para despertar o gosto pela leitura, valorizando a literatura
em suas diferentes formas de expressão e promovendo a cidadania. Já montei tendas
de troca de livros em João Pessoa, Bananeiras, Solânea e agora Mari.
No tempo da ditadura, que
Deus a tenha e o Diabo a carregue, eu lia livros escondido, com medo dos
castigos militares. Na minha Itabaiana, um professor foi condenado por suspeita
de subversão, tendo como prova o livro “Eu sou uma lésbica”, de Cassandra Rios.
A obra foi considerada subversiva, indecorosa e uma afronta às famílias
brasileiras. Ou seja: livro era uma espécie de droga proibida e fazia muito
sucesso. O próprio ato de ensinar a ler virava subversão, em um país onde 40%
da população era analfabeta de pai, mãe e cocô de galinha.
Em Mari, os escritores
locais, que os há em todo canto, já exibem orgulhosamente seus livros na
estante da Biblioteca Viva. Autor de dois livros de poesia, o professor
Edmilson Trindade foi o primeiro a disponibilizar sua produção para troca.
Outro professor passou por lá e teve a ideia de incentivar seus alunos a ler os
livros expostos. Foi logo estabelecendo regras: cada aluno leitor deveria fazer
um trabalho, analisando a obra. Pense numa postura contraproducente! Obrigar
criança do ensino médio a ler e provar que leu, é ótimo recurso para causar
repulsa ao livro. Se essa galera souber que sou o responsável pela Biblioteca
Viva, capaz de me elegerem o maior sacal do ano letivo, junto com o professor.
Livro é igual amor: não se impõe, se desperta.
Na mesa de trocas aparecem os
livros mais esquisitos. Alguém deixa um opúsculo das Testemunhas de Jeová e
leva “O ceticismo da fé; Deus: uma dúvida, uma certeza, uma distorção”, de
Rodrigo Silva. Outro cliente cretino leva um exemplar de “O anjo torto”, Gilvan
de Brito, e larga uma agenda usada de 2018 na mesa de permutação. O livro mais
procurado e nunca encontrado, no entanto, é “Democracia no ar”, história da
própria rádio comunitária Araçá que escrevi em 2000 e só se encontra nos sebos.
Até hoje as pessoas de Mari rastreiam esse livreto. Nessa publicação eu não me
preocupei em fazer literatura. O objetivo primário da obra é relatar a nossa
jornada pela construção da rádio popular da cidade. Muitas monografias foram
produzidas a partir desse livro, por estudantes marienses. Uma delas é assinada
por Maria de Lurdes Fernandes da Silva, em 2016, com o título de “A rádio
comunitária Araçá de Mari”. O trabalho remete à década de 1970, quando, “em
meio às amarras da ditadura militar, Fábio Mozart entrou em longo romance com
as amplas possibilidades ideológicas relacionadas às ondas do rádio, o que os
ativistas das rádios livres chamam de reforma agrária no ar”. Confesso que, no
mínimo dos mínimos, me vejo honrado com esse reconhecimento por parte das novas
gerações marienses em relação às nossas lutas comuns. O povo de Mari tem
orgulho de sua rádio até hoje.
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