terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Monobloco no carnaval sem foco

 


Você dorme pensando que a barata esgotou sua capacidade de criar, acorda e a barata se revela mais criativa. É um fenômeno da natureza. A barata descansando em sua toca, em plena folia de um carnaval que não existe mais, acabrunhando a já humilhada raça dos descarnavalizados, em modo off na pandemia sem alegria. O espírito do inseto passeia automaticamente de uma imagem para outra, em abstrações sistemáticas da consciência antiga e prenhe de saudades-roxas e cheirosas.

Passeios na bicicleta Monark do tio Djalma com chapeuzinho de palha e as frasezinhas pseudopicantes, óculos escuro artesanal, lança de material plástico e o jogo da memória rodando em torno dos “Toureiros”, “As piruas”, “As putas da Rua das Flores”. Outros blocos vão surgindo, sem risos, sem som, sem bebidas, cortejos fantasmas em preto e branco. Velhos carnavais vividos e não vividos. Carnavais sem camisinha. Carnavais sem paredões. Dia de sol, domingo de fantasia, segunda de glitter e abadá, terça de ninguém é de ninguém, quarta de “tô me guardando pra quando o carnaval chegar”. Celebrar essa humanidade sem rumo, pensando que vive em outro mundo. “Se o amor é fantasia, eu me encontro em pleno carnaval”, como sonhou Vinicius de Morais. “O Carnaval é uma festa de criança encenada por adultos”, garante o imaturo Pedro Pueril. “Carnaval pra quê, se eu passo o ano inteiro sambando na cara dos outros?”. E depois do carnaval? O chá de bebê. E depois? É emendar os fatos psicológicos carnavalescos, os afetivos, os representativos e os que escolhemos para puxar os vagões dessa composição alucinada carnaval a dentro das ruas mortas das quartas de cinza.

Prazeres inconsequentes, pileques homéricos, heroicos na resistência dos três dias de conflagração. Rolava até patente para os mais vigorosos e resolutos na arte de ingerir álcool. Cheguei à graduação de major. Desejos lancinantes, paqueras inconvincentes, excitações espantadiças. Alegrias mascaradas, dissimuladas, sub-reptícias. A camada do talco barato no suor do crânio, o cheirinho da loló recentemente inaugurado no éter etílico da quinta-essência dos principiantes da gandaia grotesca. O riso idiota aberto na rua, atrás dos caboclinhos. O gingado palerma, a dança bocó acompanhando o ritmo dos índios do mestre Mocó. O solfejo desarmonioso seguindo o cortejo das “Virgens Venéreas”. O primitivo instinto teatral seguindo os movimentos do mestre Josa e seus índios “Assombrados da floresta”. Maravilhamento diante do boi do mestre Especiá. Assustado, contemplando tanta audácia de meros “zé ninguém” transformados em condes, reis e rainhas, nobres do povaréu. “O malandro é o barão da ralé”, descobre Chico Buarque. O que resta de dignidade e brio do pobretão, desfilando solene e cheio de virtudes artísticas nas ruas do meu carnaval nostálgico. Os poetas da baderna, bêbados líricos da grande farra sazonal, o folião e sua fantasia no bloco de um homem só, insociável brincante se instituindo a si mesmo na sua expressão de arlequim engenhoso. Ecos de um carnaval distante da sociedade de consumo. Celebração pagã de antigos bárbaros comendo, bebendo e dançando tristemente em bailes de devaneios malcontentes. Desfile de blocos de uma só figura, os tais monoblocos.

Carnaval pandêmico. Desfiles cadavéricos, bailes macilentos, homens e mulheres mascarados antipáticos e enfermiços. Incivis e desabridos foliões sem máscara, lívidos de ignorância. Adereços desbotados lembrando a solução para o mal. Álcool em gel nas mãos do infiel. Desfile de massas humanas individualizadas, na solidão do carnaval dos estúpidos. Instintiva e intuitivamente, o bufão do carnaval quer ser cada vez mais uma barata galhofeira para fugir do chinelo baraticida. “Comamos e bebamos que amanhã morreremos”, assim escreveu o profeta em I Coríntios, 15:32. Ele, o iluminado bíblico, ainda garantiu que “os mortos não ressuscitam” e, portanto, aproveitem o carnaval enquanto a dona Onça Caetana não vem, disfarçada de febre, tosse, cansaço, perda de paladar e olhos vermelhos. Ela se aproveita da cobertura vacinal incompleta pra deitar e rolar no carnaval do flagelo pestilento. Nos carnavais primitivos, as bacantes evocavam o deus Dionísio (Baco para os Romanos), gritando festivamente: “Evoé, aí vem o carnaval!” Os que querem viver até a última gota azeda de vida, esses gritam no carnaval da pestilência: “Oh mané, tira o disfarce da cegueira e bota máscara!”

 

 

 

 

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