terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Professora Nini, cinquenta anos à frente do seu tempo

Por Joacir Avelino*

 

Quando cursava o primeiro ano ginasial, hoje quinta série do ensino fundamental, no Colégio Estadual de Itabaiana-PB, deparei-me com a disciplina Geografia. Até então, acreditava que bastaria decorar nomes de rios, países e regiões para passar de ano. Achava a matéria sem graça. Isso na década de setenta.

No primeiro dia de aula, eis que surge uma jovem, bonita, olhos azuis e elegante. Apresenta-se para os alunos: meu nome é Severina Paes de Araújo, mas podem me chamar de ‘Nini’. Nasci em Goiana-PE, mas me considero itabaianense de coração.  Sem muitos rodeios, antecipou-se ao pensamento dos pupilos: sei muito bem que vocês consideram essa matéria chata, desinteressante e desnecessária, mas vamos tentar desmistificar esse mito.  Pergunta à plateia: vocês sabem de onde vieram e onde estão? Toda turma calada. Então, a mestre continuou sua peroração. Vamos falar um pouco sobre onde estamos. Itabaiana, banhada pelo Rio Paraíba. Instigava a plateia: sabem onde ele nasce? Sabem quais são seus afluentes?  Silêncio. Vamos lá.  O belo rio nasce na Serra de Jabitacá, município de Monteiro-PB. Possui como afluentes importantes o rio Taperoá (antes de formar o açude Boqueirão), rio paraibinha (hoje forma a represa de Acauã) e o rio Gurinhém. Isso tudo era exibido com o mapa físico na sala de aula.

Naquela época, a mestre já vaticinava: se não forem adotadas providências governamentais necessárias, o rio Paraíba poderá se tornar um riacho ou então desaparecer. Ela estava certa. O assoreamento do rio hodiernamente é uma realidade. O leito do rio desapareceu, houve um processo de acúmulo de detritos, a erosão é visível em decorrência do desmatamento, numa criminosa retirada da cobertura vegetal em suas margens. Ali só encontramos lixo de toda espécie, esgoto a céu aberto, areia e terra.  O curso da água deixou de existir. A escassez ou ausência d´água nas residências só não ocorre devido à construção, em 2002, da represa de Acauã, situada no município de Itatuba, possibilitando o abastecimento de Salgado de São Félix, Itabaiana, São José dos Ramos, Mogeiro, Pilar, Ingá, Juripiranga e Juarez Távora.  Mostrava ali a importância de preservação da natureza para a sociedade.

D. Nini, fazia questão de ressaltar sobre a falta de recursos técnicos e financeiros para o ensino de Geografia, porque segundo ela, necessário se fazia o deslocamento dos alunos para uma pesquisa de campo em relação aos pontos ali levantados.  Somente assim seriam concretizadas vivências com os lugares de forma a fazer com que os alunos pudessem compreender e construir novos e complexos conhecimentos sobre o homem e o seu habitat.

A aula já se encaminhava para o seu final, quando um aluno interrompe: professora, hoje tem jogo do Brasil contra a Tchecoslováquia, na abertura da Copa de 70. Todos riram da intervenção do ginasiano, menos D. Nini. Ela continuou sua aula inaugural. Lançou mão de um mapa-múndi. Passou a falar sobre o México. Convidou todos a fazerem uma viagem até Guadalajara, onde a seleção brasileira de futebol estava concentrada. Capital do estado de Jalisco, situada a oeste daquele país, localizado na América do Norte (primo pobre), limítrofe com os Estados Unidos da América. Outro aluno não se conteve: professora, já que a senhora tá falando do México, que tal contar algo sobre o Zorro e o Sargento Garcia, na cidade de Monterrey.  Ela respondeu: o tempo já acabou, fica para a próxima aula.

Não poderia deixar de falar um pouco da altivez dessa professora, enquanto ser humano. Num tempo em que as mulheres identificadas como sendo lésbicas, sofriam de estigma social, exclusão e preconceito em casa, na escola, no trabalho e na sociedade como um todo, chegando até a serem tachadas de doentes, embora tenha havido pequenos avanços nos dias atuais, D. Nini, contrariou a todos. Desde a década de 50, a contragosto dos pais, passou a viver um relacionamento homoafetivo estável com a sua companheira Ozanete Lucena. Ambas se respeitavam e se faziam respeitar. Era comum vê-las de mãos dadas nos finais de semana pelas ruas da provinciana Itabaiana. Ninguém ousava admoestá-las. Elas quebraram muros e construíram pontes. Afastaram o preconceito, sem medo de serem felizes.  A mestre deixou um legado no sentido de identificar, refletir e assumir compromissos sobre diferentes aspectos da realidade em um mundo permeado de cancelamentos. De formação católica, nunca deixou de lecionar em escolas públicas e particulares, com destaque para os colégios religiosos, onde era recebida com muito respeito, não só como excelente professora, mas também como uma pessoa que soube amar e dar amor com total transparência.

*Joacir Avelino, policial federal aposentado, advogado e escritor.

 

 

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