quinta-feira, 13 de abril de 2017

Bendito o que vem em nome da simetria e da sublimidade

Sandoval Fagundes

Aos sessenta anos, um homem sai pelas ruas construindo e distribuindo formas artísticas pelas árvores do seu bairro. Investimento pessoal, “porque a vida não tem fins lucrativos.” Nas árvores mal cuidadas, fios se enroscam em voltas, cintilando sob o sol. São as “próteses artísticas” de Sandoval Fagundes, intervenção que ele chama de “Ar amado”. Sandoval também é poeta e pessoa munida de todos os apetrechos de artista em tempo integral. Os bêbados poetas do seu bairro aplaudem as peças nas árvores, entretanto, difícil fica aceitar que a comunidade venha a vislumbrar a beleza e o simbolismo da arte de Sandoval. Mais duvidoso ainda imaginar que ele venha a ter algum patrocínio, particular ou oficial. Nada disso haverá de diminuir a satisfação de Sandoval com a confecção de suas composições insólitas.

As árvores apresentam uma variante festiva como se fosse Natal.  No proletário bairro Ernesto Geisel, João Pessoa (PB), o fotógrafo e ativista cultural Sandoval Fagundes ergue sua visão de mundo a partir do arame e planta fantasia nos pés de acácia. O sol brilha na sua careca enquanto ele pensa nos ciprestes de um campo repleto de obreiros do sacrossanto mister de trabalhar o sonho e o belo como matéria prima. Glorioso Sandoval! Nesses ásperos tempos de materialismo e desrespeito às criaturas, semeia rosas de arame e reza a um deus improvável pela paz no mundo. Não a paz dos lugares santos dos cristãos, onde os mortos jazem sossegados e alienados. A paz da arte de Sandoval é feito aquele bem estar que sucede a uma trégua no meio da guerra. Na verdade, Sandoval é mais um artífice que vive na corda bamba, mantendo tenso e esticado o fio de arame da vida, equilibrando a longa e profunda ferida da existência com a exultação da tentativa de viver sem ódio e intolerância. Subsistir apenas para plantar subjetivas intenções de subversão de falsos valores.  

Para sobreviver, certa vez Sandoval foi trabalhar em taxi alugado. Rodava a cidade com suas telas e tintas na mala. Quando estacionado, pegava a prancheta e desenhava os pequenos e imponderáveis detalhes da vida urbana. Nada a ver com as prioridades dos profissionais do volante, recolhidos no cotidiano comum. Um sujeito que destoava do conjunto orgânico e metabólico da sociedade consumista, corrupta, alienada e competitiva. Foi regurgitado. Os colegas o expulsaram da praça por não se adequar à máfia dos taxis e seus esquemas de corrupção. Lá se vai Sandoval tentar a vida fazendo biscates, limpando jardins na velha cidade, essa imensa floresta sem árvores. Foi cuidar das flores e dos insetos, dos passarinhos e das rosas de arame aflitivamente carentes de reparo, desvelo e devotamento.

Sandoval é desse tipo de gente que pode ser acordado no meio da noite por uma amiga desesperada, oprimida pela falta de medicamento controlado, deprimida pelo desamor. Um caso em que as paredes do quarto vão se estreitando, ameaçando pulverizar a pessoa vítima de ansiedade. O colega Sandoval sai no seu carrinho Fiat Uno “Deus permita que não quebre” e roda a cidade, batendo nas portas das farmácias e prontidões médicas para salvar a amiga de sua crise nervosa. Um cara tão vocacional, visceral e fisiologicamente humano no que temos de mais gentil, honrado e indulgente que fico pensando: serão os artistas os tais anjos da guarda, meio vagos e reticentes, mas ainda assim capazes de dar sentido à vida? Tem gente assim, que fica boiando acima das coisas e dos homens, à margem dos nossos pequenos conflitos, capaz de fabricar devotadamente pequenas obras de arte, pendurar em árvores e ficar esperando o lento processo de desadormecer e estimular a lógica do belo.


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