terça-feira, 2 de julho de 2013

A primeira vez


Raul Seixas cover

Nesta madrugada do dia 3 de julho, acordo com o sensor do dever a ser cumprido ligado porque não escrevi a crônica para a Toca do Leão. Dormi lendo o livro “Esse é o homem”, do multimídia WJ Solha, sonhei com o Führer ditando ordens para a Alemanha ganhar a Copa de 2014 no Brasil e dona Flor querendo me dar sua flor, tudo num quadro caótico, épico, lírico, erótico, dramático, herético, hermético e cômico, coisas de sonho e da poesia tipo enxurrada de imagens, sacações e genialidades do grande WJ Solha. A palavra sacação não existe dicionariamente, é só um saracoteio do cronista sem assunto. 

Depois de conferir a caixa do correio eletrônico, abri o blog do Samarone Lima. O tema da crônica é a primeira vez, as inaugurações, a quebra do cabaço, o começo de algo. Quais as ocasiões que você se lembra de ter começado alguma coisa marcante?  

Lembro da primeira edição do meu primeiro jornal em 1970, o “Jornal Alvorada”, órgão literário e noticioso. Investi todo dinheiro que ganhei como freelancer no Censo Demográfico daquele ano em que o Brasil foi tri-campeão do mundo e a ditadura tomava sua forma mais cruel e sanguinária.  Concretização de um sonho do garoto com seus quinze anos de timidez e besourinhos anarquistas na cabeça. 

A primeira vez que dei expediente na estação ferroviária do Triângulo, em Itabaiana. Sou da primeira geração de ferroviários que entraram na RFFSA por concurso. Meus colegas já de meia-idade, homens durões, nada amistosos, com aquela raiva estampada na cara porque eu, um rapaz de 20 anos, ocupava o espaço que eles lutaram tanto para conquistar.  O sujeito para entrar na empresa tinha que chaleirar o chefe, praticar durante anos, de graça, até cair nas graças do Agente Chefe e ser indicado. Nós entramos por mérito e no começo foi dura a convivência com os colegas veteranos.

A primeira bebedeira foi nas areias do rio Paraíba, cachaça com doce de goiaba, uma mistura fatal. Roedeira por causa de uma namorada. Fui parar no hospital, com desidratação. Acordei amarrado na cama, tomando soro. Nunca esqueço a cara da enfermeira me olhando com ar de reprovação:

--- Bonito, tão novinho e já na cachaça! Mas isso é bom, quando toma uma carraspana braba na primeira vez e quase morre, não bebe mais.

O primeiro carro, um fusca do tempo da guerra, azul calcinha. A gente batizou de carro dos Flintstones , desenho animado de uma família pré-histórica cujo carro de pedra não tinha chão. Meu fusca tinha buracos enormes, quando passava na poça, enchia o bichinho de lama. Lembro bem da satisfação de estacionar na praça e ficar sentado, balançando as chaves. Foi um dos meus muitos momentos de babaca. Já confirma meu compadre Gilberto Bastos que todo adolescente é uma besta andante. 

A primeira transa foi na beira do rio Paraíba, aquele nosso paraíso onde aprendíamos a jogar bola, carregar água em burricos, pescar peixinhos vagabundos e a iniciação sexual, vendo os jumentos no cio e as lavadeiras de roupa mostrando as calçolas. Foi justamente uma velhota lavadeira que me chamou para ver de perto aquela sua dobradiça que tanto me chamava atenção. 

--- Nunca viu não, meu fí? Venha ver que o bicho não morde não!

A primeira morte na família, minha vó Joaninha. Chorei três dias seguidos. O mundo se acabou para mim durante algum tempo. Profunda depressão pela morte daquela criatura tão querida. Pensei que jamais sairia da fossa. 

A primeira vez que ouvi “Ouro de tolo”, de Raul Seixas. Era 1973, eu morava na Praça Epitácio Pessoa. O rádio tocando aquela coisa diferente, uma letra que queria dizer tudo e não dizia quase nada, mas eu entendia tudo, ou pelo menos intuía. Aquela melodia arrastada, a voz aguda estranhíssima de um cara que ousava fazer diferente numa época dominada pelo dragão onisciente, eterno, onipresente como pesadelo de uma geração. Pensei na hora: “essa música vai fazer muito sucesso”. Não deu outra. Naquela época, o rádio tocava músicas de qualidade. 

Por hoje é só. Depois continuo o flashback.  

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