Síndrome da estreia
Adeildo Vieira
Em meus quase trinta anos de ativista
cultural renitente, já produzi dezenas de espetáculos. Pequenos ou grandes,
ousados ou tímidos, sozinho ou com banda igualmente renitente, mas nunca deixei
de produzi-los. Sinto isso como uma missão de criatura que respeita sua
condição de criador. Nessa escalada a palcos diversos, há um sentimento que se
tornou frequente demais pro meu gosto. Falo das sensações vividas na estreia e
que atormentam tanto a mim como a Caetano Veloso, como já o vi confessando em
entrevistas pretéritas.
Estreia é como test drive em submarino,
a gente mergulha e teme não vir à tona pra sentir o ar e ver o céu. Mesmo que
tudo pareça impecável, uma incontida tensão atrapalha os prazeres de contemplar
as belezas do mergulho programado em nossa própria obra ante os olhos de quem
se deleita com nossa aventura. Estrear é parto de menino que, mesmo submetido a
excessivo pré-natal, deixa a mãe em apuros, numa quase inexplicável
insegurança. Estrear é experimentar a estranha possibilidade da mãe não vir a
gostar da cara do próprio filho.
Assim como os partos, estrear deveria
ser uma só experiência vivida a cada filho. Mas o que se dizer quando se faz
vários partos para um mesmo rebento? Bom, numa realidade onde nossas produções
não se sustentam financeiramente e os patrocinadores não lhe confiam plateia,
somos obrigados a fazer sucessivas estreias para um mesmo show. De tão
espaçados, nossos espetáculos não aprendem a andar, caminhar, correr, como
fazem as crianças que se atiram no mundo aos cuidados de seus pais. Retornar ao
palco depois de três meses de uma estreia é estrear de novo. Mas isso não é o
pior. Há ainda espetáculos natimortos. Esses são mais dramáticos, pois nascem
sadios e morrem nos braços da mãe, vendo a luz uma única vez.
Imagina a que conclusões chegaria Freud
ao analisar uma mãe que pôs o filho de volta ao útero inúmeras vezes, velando-o
à espera da próxima “boa hora”. O que aconteceria se a gestação vivesse em
eterna convivência com o puerpério? Na verdade, bastava que Freud fosse
compositor e montasse show comigo pra experimentar essa estranha maternidade
criativa. Talvez até sobrevivesse à sua condição de pesquisador.
Mas, surpreendentemente, e longe de ser
algo trágico, continuamos administrando nossos re-rebentos, conseguindo ainda
vê-los engatinhando na sala de nossa esperança. Há sim, uma esperança de ver
nossos espetáculos crescidos, robustos, andarilhos, aventureiros, aventurados.
Caminhar na busca dessa realidade é motivo de alegria e de uma sadia sensação
de movimento, um orgulho de ter coragem de lutar e acreditar. Quanto à analogia
aos partos, fica como mero exercício de imagem, já que os sentimentos de mãe
jamais terei o privilégio de experimentar.
Bom, de síndrome da estreia já sei que
não morro. Assim sendo, com orgulho anuncio que planejo minha próxima aventura
recorrente, porém inédita. Aguardem!
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