Eu viajando com um jovem amigo, de
razoável cabeça e arejada visão de mundo. O papo: situação de violência sem controle nas
escolas, nos bairros da periferia, falta de limites na vida social. De repente,
me surpreende a tese do cara. Para ele, já está na hora dos militares tomarem o
poder e botar ordem na casa. Depois, entregariam aos civis as rédeas da nação,
com os potros devidamente amestrados. Não receia a possibilidade dos fardados
gostarem de mandar e ficarem por mais vinte anos, como foi na última vez em que
o Brasil virou um grande quartel. “O país agora é outro, as pessoas têm mais
consciência, até nas quebradas mais humildes tem gente que estuda, frequenta faculdade,
sabe onde tem as ventas. As Forças Armadas não teriam mais condições de se
manter por muito tempo”, acredita ele.
Com razoável experiência nessas coisas de
regime de força, eu disse: chega uma hora em que, quem tem a arma, não entrega
a rapadura nem para quem inventou democracia. Isso é uma tese que não se
sustenta na História da humanidade. Nenhuma nação se reconstruiu ou se elevou
sob o poder militar, e só posso imaginar que você defenda isso porque realmente
a mídia vem sustentando essa saída pela tangente democrática na defesa de altos interesses prejudicados. Atropelar a democracia em nome do combate à
violência é trocar o tiro perdido nas quebradas pelo tiro, igualmente sem lei,
do poder armado. Chega um instante em
que a autoridade é posta em prática apenas para reprimir as consciências, e
isso é muito grave.
Isso eu disse ao rapaz, um cara que
vivia em comunidades pobres e conseguiu superar sua condição de cidadão de
segunda classe através do estudo. Ficamos nessa conversa um tempão, até passar
em um sítio nas proximidades de nossa cidade.
--- Pára aí, vamos dar carona àquela
moça, é minha conhecida.
Parei o carro, ele foi ajudar a mulher
que conduzia uma caixa de papelão. Abri a mala do carro, verifiquei umidade na
caixa. Alguma coisa gelada. Após deixar a amiga em sua casa, meu compadre
explicou:
--- Aquela caixa carrega carnes e outros
produtos perecíveis. Ela é diretora da escola no sítio, todo dia leva e traz as
carnes para botar em sua geladeira, porque na escola não tem esse luxo.
Eu disse:
--- Taí explicada a nossa pendenga. O
que falta nesse país é uma revolução pela educação do tipo sonhada por Leonel
Brizola e por mestres iguais a Cristóvão Buarque. Acabar com essa cachorrada de
pagar salário indecente ao professor, oferecer escola de tempo integral com
tudo que o aluno precisa para se educar, federalizar as escolas do ensino
básico, enfim, investir com gosto nesse setor. Em dez anos, acabava esse papo
de crianças das periferias terem chefes do tráfico como seus heróis. Aos
domingos, a banda dos alunos tocando bem cedo para anunciar os torneios com
seus colegas atletas. O Brasil ganhando medalhas e mais medalhas, a população
despertando para os verdadeiros valores da cidadania. E sabe por que não dá
certo militar no comando? Chega uma hora em que os estudantes querem tocar seu
trombone lendo suas próprias partituras. Os milicos, o que fazem? Confiscam os
trombones e as bocas.
Meu amigo ficou meio assim assim, ainda
querendo defender sua tese fardada e verde olivada. Daí me toquei sobre a
história da professora e suas carnes viajantes. Se a escola não tem geladeira,
por que as carnes estavam refrigeradas no fim do dia? Das duas, três: ou a moça
estava surrupiando merenda escolar ou a secretaria de educação do município
está fazendo um dedo em pé e quatro rodando com a verba da educação. Veio então
outra tese de jerico à baila: o problema do Brasil é o seu povo. Urge então
trocar de povo ou “locupletemo-nos todos”, como diria o cínico Millôr
Fernandes.
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