Em 1970 eu tinha quinze anos de idade e
estudava numa escola particular em Itabaiana do Norte. Nossa educadora era uma
mulher baixinha, enérgica e disciplinadora. Lembro de dois companheiros de sala
de aula: Luciano Falcão, filho do chefe da estação ferroviária, Zé Falcão, e
Ivan Oliveira, que depois entraria comigo nos quadros da Rede Ferroviária
Federal, ele como maquinista, eu na função de Agente de Estação.
Eram tempos de muitas histórias de
bravura e covardia protagonizados pelos brasileiros de todas as matizes,
debaixo de um regime de força que já durava seis anos. Criados naquele clima de
medo coletivo, os rapazes como eu pouco suspeitavam do terror que se instalou
nas mentes das pessoas. Qualquer um poderia ser seu delator. Bastava uma
palavra de protesto, um comentário, um ato qualquer de pretensa rebeldia para
constar nos cadernos da repressão, sofrer humilhação, prisão e inquéritos
forjados. Os estudantes foram proibidos de falar em política, através de um
decreto do ditador do momento, o General Emílio Garrastazu Médici, considerado
o mais sanguinário dos generais presidentes do regime militar. As lutas do povo
eram castigadas com torturas, até assassinatos nos porões do Exército e Polícia
Federal. A censura não deixava escapar nenhum protesto na mídia. Enfim,
instalava-se a famosa “paz de cemitério”, onde o medo imperava.
No interior, o povo tinha mais medo da
ditadura do que do Satanás. Em Itabaiana, muita gente foi presa, acusadas de
subversão, vítimas de delações cavilosas.
No contexto daquele momento histórico, sem acesso a informações, os
jovens não sabiam o que era democracia nem tampouco entendiam o significado do
golpe militar para a vida do país. Depois, os sonhos de revolução e o desejo de
combater aquelas infâmias invadiu muita gente moça, eu entre elas. Discutíamos
política escondidos, onde livros clandestinos nos davam ideias bem diferentes
do clima de repressão que foi imposto à sociedade.
Virei militante, e isso é outra
história. O que quero falar hoje é da minha escola primária e sua professora.
Ainda está viva, essa mestra. Devo muito a ela pela base da formação escolar.
Recordo que a rapaziada chamava o Presidente de “Garrafa Azul”, uma forma de
galhofar com o poder absoluto dos militares. Eis que, um certo dia, minha
professora me pegou apelidando o general. Essa senhora passou quase uma hora me
humilhando diante da turma e exaltando a ditadura. No fim, me aconselhou a
respeitar os superiores e mandou todo mundo cantar o hino nacional, de pé, em
homenagem ao general presidente.
Conto isso para
lembrar a minha vivência particular da ditadura, nossos pequenos atos de
resistência como a brincadeira de chamar o Médici de “Garrafa Azul” e,
principalmente, o pânico que se instalou na sociedade. Aquela professorinha
talvez nem gostasse tanto do regime, mas era preciso deixar claro que não
aceitava nenhum ato de protesto em sua escola, porque “as paredes têm ouvidos”,
qualquer um poderia ser acusado de comunista e passar a viver no inferno. Os
delatores andavam apontando pretensos opositores que iam se explicar nos
quartéis. Muitos deles inocentes, como éramos todos naquela escolinha primária.
Hoje, em pleno auge da democracia, vemos rapazes e moças nas ruas
chamando a Presidente Dilma de “puta” e pedindo a volta dos militares. Não
importa a motivação política, esse tipo de ofensa seria motivo de prisão e
tortura no regime de força que manteve o Brasil sob as botas castrenses durante
vinte anos. Muita gente pagou até com a morte por muito menos. Um professor
meu, inadvertidamente, pichou uma parede com “abaixo a ditadura”. Foi preso e
torturado no quartel do Exército.
Depois, em 1980, no final do terror de Estado que marcou nossa
geração, eu escrevi uma peça chamada “Batalhão das sombras”, falando justamente
do medo que foi a tônica daqueles tempos sombrios. Uma personagem declamava
poema de Carlos Drummond de Andrade, o “Congresso Internacional do Medo”:
"Provisoriamente não
cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas."
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas."
Nenhum comentário:
Postar um comentário