segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Oitenta anos de nossa matriarca


“Minha mãezinha
Que já está com sessentinha
Vou cantar essa modinha
Pra senhora se lembrar”
(Martinho da Vila – Calango longo)

No caso, minha mãezinha já está com oitentinha completados ontem. Nossa anciã da tribo continua a nos dar lições, mesmo calada, fragilizada, o andar mais lento, as juntas doendo. Falamos de velhos parentes que não se sabe onde vivem, ou se estão mortos. Cadê Jackson, Josué, os filhos de tia Judite? Quando se fica velho, contar a memória é assim como perpetuar e enriquecer as novas gerações. A voz tribal que repassa as notícias dos antepassados mais remotos, ir buscar as origens familiares no seu ponto inicial, essencial.
Quando saí do óvulo-casulo da família, minha mãe tinha 42 anos de idade, uma jovem senhora dedicada ao esposo e ao lar, a última geração a preservar os valores de um mundo que não existe mais, de fidelidade e compromisso de proteger a relação familiar com respeito e dignidade. Agora, nós ficamos semi-perplexos ao vê-la dedicada ao marido num esforço constante para afinar as asperezas com compreensão e carinho, há mais de meio século. Para muitos, é estranho testemunhar essa relação. A muitos parece apenas subjugo patriarcal. Difícil entender, nós que não vivemos a cultura das primeiras décadas do século vinte, quando só no início dos anos 50 as mulheres começaram a ter acesso aos cursos universitários. Era se preparar para casar e ser uma boa esposa, dedicada ao marido a vida inteira. Moça “de prendas domésticas”, como se dizia, que vive para cuidar do marido, dos filhos e da casa.
Penso que minha mãe, como as demais de sua geração destinadas ao lar, perderam muita coisa ao passar a existência centradas no esforço de dar conforto aos familiares, sem pensar em si, sacrificando sonhos e projetos pessoais, se é que existiam em suas mentes adaptadas à filosofia de vida de suas épocas. No sagrado lar não se permitiam máculas, pelo menos aparentemente. Foi nesse clima que fomos educados. O pai ordena, a mãe obedece e repassa as coordenadas ao restante da família. Subverter essa “ordem natural” era desafiar o pátrio poder, com sérias consequências.

De uma forma ou de outra, “a vida é uma ordem”, conforme o imperativo drummondiano. O tempo tudo apaga, tudo acende de novo, e esse repetido acender-se e apagar-se das coisas é que torna aos nossos olhos o ato de viver uma coisa assim absurda e fantástica. Minha mãe é uma linda, brilhante e elegante espécime de um mundo grandioso e esplendoroso que ela revive com tristeza e nostalgia.
Feliz aniversário, dona Iraci.



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