O DESEQUILIBRISTA
Parou o carro no sinal, aparece o moleque tentando
malabares com três tristes laranjas. Alternativa: fechar os vidros, olhar para
os pés, se ligar na canção imbecil do rádio ou recitar de memória frases de
grandes líderes. “As questões sociais devem ser tratadas pelas pessoas
diretamente envolvidas nelas.” Quem disse isso?
O sinal abriu o verde. O ódio é o de sempre. A paixão,
eterna.
A INTOCÁVEL BELEZA DO FEIO
“Você toca samba, bolero e valsa no meu coração
apaixonado!”, exclama a senhora de meia idade no sinal de trânsito para o
primeiro motorista que freia o carro no limite da faixa. Diz isso para todos.
É uma mulher exaustivamente feia. Os olhos de vesga, no
entanto, derramam um “quê” de nobreza, uma figura de misteriosa doçura. Dizem
que fica ali no ponto desde que um motorista a chamou de “bela”. Esperando mergulhada em seu sonho,
entranhada, emprenhada pela força do elogio daquele desconhecido.
O BÊBADO E O DESEQUILIBRISTA
Andava por entre os carros parados no sinal, gesticulando
muito, dando ordens, xingando os motoristas que não arrancavam logo depois do
sinal abrir. Sentava no meio fio e reclamava da ignorância dos condutores.
Não pedia nada. Apenas exigia rapidez no tráfego e
educação, nada de buzina! Durante anos
de sobrevivência no semáforo, o bêbado adquiriu o tempo exato, o time para vencer a rapidez das
arrancadas.
Num domingo ao meio-dia, perdeu a corrida para um Fiat
Uno. “Ta lá um corpo estendido no chão”, exibindo-se para as objetivas do
jornal sensacionalista. Antes de fechar os olhos, o bêbado, muito correto,
mandou todo mundo acelerar. Na hora, passou um velho Passat com o pára-choque
avisando: “Arma branca, só cachaça”.
ALTAMENTE RECOMENDÁVEL
Acreditava em Deus... mas, com um pé atrás. “Só as
dúvidas santificam”, síntese perfeita do poeta Manoel de Barros. O que acabava
com seus dias era aquela sua indefinição. Na chuva, não sabia se abria o
guarda-chuva ou esperava passar a nuvem.
“E Abraão disse a Lott: ´Peço-te que te separes de mim.
Se fores para a esquerda eu irei para a direita. Se fores para a direita, irei
para a esquerda’. Na dúvida, ele passou ao largo das manifestações de rua. Não
pode haver coexistência com os baderneiros enquanto não seguirem as normas
regulamentares. É altamente recomendável. Ou não...
DESVIO DE CONDUTA
Ia passando na avenida num domingo de sol, foi
abordado por garotos alegres e moças enfeitadas. Junto, uma repórter da TV que
já foi indagando:
--- E aí, senhor? Defendendo a homossexualidade na
terceira idade?
Ele tentou explicar que não estava na Parada Gay, ia só
passando. No outro dia, abriu a porta e deu de cara com um grupo de travestis e
lésbicas aplaudindo a coragem do coroa em sair do armário.
--- Eu sabia que o senhor era um dos nossos, esse
jeitinho de andar, de falar... – Disse um rapaz andrógeno.
No trabalho, foi se chegando, os colegas se afastaram,
como se fosse um leproso.
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