quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Disfarça que o Estado vem aí!




Eu sou um sujeito que sempre trabalhou com o terceiro setor, um cara da periferia, dos subúrbios e cidadezinhas quase esquecidas. Já fiz teatro em assentamento da reforma agrária, em escolinhas públicas de sítio. Montei tenda de babau no sítio Linda Flor e me inspirei no velho Mestre Ciço pra fazer boi de reis nas quebradas de Cruz do Espírito Santo, em uma estaçãozinha de trem onde trabalhei. Eu sempre gostei de me ligar a movimentos espontâneos de periferia, esse universo meio caótico da cultura popular onde a própria cultura é muito forte, e viva.
Acontecem coisas incríveis no meio desse povo, mas você precisa de ter grana para trabalhar qualquer projeto. Mesmo que seja muito criativo, sem dinheiro, sua inventividade não chega muito longe. Daí, o caminho é o financiamento público, o que não é muito legal porque você passa a ter que conviver com um bicho chamado burocracia. Primeiro, você terá que registrar em cartório e jogar na corrente da imensa burocracia uma organização não governamental sem fins lucrativos. O cara que transa com linguagens artísticas fica meio doido no meio da papelada, não tem experiência nem saco pra lidar com as leis, as taxas, formulários, prestações de contas complicadas, enfim, esse incrível mundo pouco funcional da burocracia.
Tomemos os Pontos de Cultura como exemplo. A ideia é magnífica: pegar focos de produção e difusão cultural nas cidades e injetar recursos para que se possa estruturar a organização, dando condições e ferramentas para utilização de tecnologia moderna de comunicação como câmeras, ilhas de edição, serviços de som e aparelhagens destinadas à atividade mais importante da entidade selecionada em edital. O problema é quando uma simples associação de bairro, ou escola de samba, terreiro de candomblé, grupo de teatro ou dança, cineclube ou bloco de carnaval precisa concorrer a esses editais. A própria seleção é um calvário. Depois, quando a ONG é reconhecida como Ponto de Cultura, recebe uma grana inicial para comprar os equipamentos descritos na proposta de trabalho. Sem dinheiro para pagar um contador, mais de 80% dessas entidades ficam inadimplentes por causa da imensa dificuldade para lidar com os complexos mecanismos de prestação de contas.
Nosso trabalho no Ponto de Cultura Cantiga de Ninar, em Itabaiana, é reconhecido pela população. Na medida do possível, enfiamos a cara em projetos culturais e educacionais, apenas com a ajuda de alguns amigos. Ontem, tive a feliz surpresa de receber mensagem de uma moça que trabalha na Caixa Econômica Federal, dando os parabéns pelo trabalho desenvolvido e colocando-se à disposição para ajudar. “Sabemos do trabalho responsável e admirável que vocês desenvolvem no Ponto de Cultura Cantiga de Ninar e resolvemos colaborar,orientando microempresários da região e pessoas físicas que têm imposto a pagar, no sentido de destinar recursos para os projetos sociais e culturais dessa entidade”. Bela e surpreendente iniciativa dessas pessoas, extremamente pertinente a forma de colaborar. Mas, e sempre tem um porém, precisamos ser reconhecidos como de Utilidade Pública Federal, e aí é onde a porquinha torce o rabo. Procurei saber o que é necessário para isso, e, mal comparando, finalmente descobri o elo perdido entre civilização e barbárie. Meninos, é tanto papel e são de tal número os itens de informações inúteis e as exigências que beira o patético e o dramático.
O Estado joga mesmo duro com o cidadão, não tem boquinha. Ainda bem que a poesia e a delicadeza do fazer artístico não se interessa pelos formulários do Leviatã. Vou procurar um cara antenado na antiarte das formalidades para fazer esse diálogo possível entre nossa ONG e os ditames do Estado para que nosso trabalho seja reconhecido de utilidade pública federal. Para mim, é mais relevante que um grupo de jovens bancários entenda a importância do trabalho do Ponto de Cultura e deseje, sinceramente, ajudar.

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