Os dois buscavam os
extremos. O máximo de álcool, pó e parada sintética. Numa conversa de mesa de
bar, um deles inquiriu: “E se a gente morrer?” “Quem morrer primeiro visita o
outro”. Pacto firmado. Aos sessenta e tantos, ainda faltava ao José Maria
entendimento das coisas da vida e dos mistérios do mundo. Seu xará e
companheiro Zé Cláudio, sendo um sujeito simples, também não compreendia porque
deslizavam assim dentro da armadilha da compulsão pelos prazeres dos
entorpecentes. A “viagem” dos dois não tinha passagem de volta. Até que fizeram
o comprometimento de regressar após o traspasse. Confabulações de mesa de bar.
A partir do acometimento
da pandemia, a morte passa a ser um tema mais frequente no bate-papo dos dois
josés. Bebiam, fumavam e cheiravam até perto da meia-noite, para continuar às
dez da manhã. Mantinham sua forma sistematizada de beber. Começavam com cerveja,
depois vodca, uísque, cachaça. As coisas deixavam de ser o que eram quando
entrava o fumo. Desenvolveram a amizade em meio à louquice dos tóxicos.
Para expandir sua
liberdade, passaram a desafiar a ordem de confinamento. “Bebo o coronavírus
como tira-gosto”, troçava Zé Maria. Durante mais de dez anos de convivência, os
dois elegeram suas tocas. Ambientes lúgubres, bares infectos, tabernas onde se
curtia rock undergroud, subcultura em
geral. Existir conforme o universo criado pela arte. Adotaram o estilo de vida headbanger, com seus valores e costumes
típicos. Velhos roqueiros que não estavam nem aí para a sociedade de consumo.
Foram os últimos a deixar as tocas, as quebradas,
com o advento do coronavírus. Até que Zé Cláudio adoeceu.
Acabrunhou-se e morreu
rápido. Zé Maria viu a vida perder a importância. Passava o dia bebendo em casa
e ouvindo bandas dos anos oitenta. As noites em desassossego com o parafuso da
saudade lacerando a cabeça tonta. A mulher foi se esconder do coronavírus na
casa da mãe. Zé Maria ficou só com seus pesadelos.
Zé jamais ouviu falar de
Henry James, escritor americano, irmão de William James. Os dois irmãos haviam
feito um pacto: o primeiro que morresse revelaria ao outro a perenidade da alma,
ou pelo menos a continuação eventual do princípio vital, aparecendo ao outro.
Não ocorreu registro histórico de que o filósofo William James tenha efetivado
o ajuste sobre o pós morte.
Na casa desguarnecida e
vaga, Zé Maria percebe estranhamente que Zé Cláudio está na fronteira do mundo
físico e o hemisfério dos espectros. Submisso à memória do parceiro, escutava
ondas que não chegavam nítidas ao alcance imediato da consciência. No quintal,
o cão Bob Marley grunhindo baixinho. O gemido rouco do cachorro dá novas
feições ao pânico. Sem bebida, sem maconha, Zé Maria quase não coordena os
movimentos das mãos. As pernas tremem, dentes rangem, ansiedade e vômitos.
Golfadas da gastroenterite e do apavoramento. Assombro contido, olhava a porta
aberta, corredor com garrafas vazias, CDs espalhados, destruição irrecuperável
do aparelho de som, cortinas rasgadas. De súbito, o celular toca. Ghost touch. Zé
Maria escuta a voz eletrônica: “Você está recebendo uma ligação a cobrar. Se
aceitar, por favor permaneça na linha”.
--- Filho da puta, só
vive sem crédito na porra do celular! Ou melhor, morre sem crédito! --- esbravejou o estressado Zé Maria.
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