quinta-feira, 9 de abril de 2020

DIÁRIO DA CASA CAIADA




Quando comprou a casa, inaugurou seu momento de realização plena, junto com o jardim modesto, as estruturas antigas e sólidas, a pracinha, o jeito de comunidade harmoniosa. “É aqui que eu vou morrer”, refletia com feliz taciturnidade. Comprou e vem pagando os juros hiperbólicos do banco usureiro e oficial. Sabe que abotoará a jaqueta amortalhada sem saldar o débito iníquo.

Aposentada, cuidava de suas plantinhas no fundo do quintal concretado. Verdes joias a debulhar-se nos jarrinhos. Alecrim, agrião, alfazema, alcaçuz, babosa, boldo-do-chile, camomila, carqueja, erva-cidreira, jaborandi, malva, macela-do-campo, tudo pela ordem alfabética, dispostas conforme seu jeito metodizado. E anotava no caderno os pequenos lances do dia a dia.

Fazia sessenta e cinco anos diluída nas lembranças fragmentadas de uma existência corriqueira. Professora rudimentar, como se dizia nos tempos do Onça. Acomodada com o cônjuge. Palavra tão antipática quanto o magistrado ignorante. Marido idem. E ausente. Desfeito no ramerrame de longa maridagem despovoada de benquerença. Ia levando, porque a medida da mulher é ser deserto, pensava. Cultivava seus silenciosos vendavais.

Dez anos de domicílio, serena e cordial com os vizinhos. Ensinando receitas, trocando pratos. Necessidade de dialogar com pessoas positivas e inspiradoras. Aparecia toda tarde na casa do velhinho diabético e cadeirante para um dedo de prosa, um chá calmante, uma reza de resistência.

Anotou no diário: “Hoje mandei destelhar a casa. Encontrada foto da antiga dona. Plantarei rosas e violetas em sua homenagem. De certa forma ela é minha amiga de moradia. Viveu aqui tanto tempo. Sinto que ela me espia pelas frestas das portas, acho que comovida pelos meus cuidados com seu antigo lar. Pintei de amarelo. Li nesses almanaques inúteis que o amarelo corresponde à sensação provocada na visão humana pela radiação monocromática, cujo comprimento de onda é de 597 nanômetros. Noção zero do que isso significa. Mas acho o louro das paredes cativante”.

Dois anos atrás, o diário registrou a primeira queixa de vizinho: “Instalaram uma oficina de lanternagem na parte de trás da casa. De maneira que ando irritadiça, desconfortável com os sons”.

Quinze dias após a anotação, lançou no caderno: “Quase nunca estou indo ao quintal. Minhas plantinhas abandonadas. Não vou além da cozinha. Os ruídos desequilibram meu organismo”.

Sua vida passou a pulsar ao som agudo dos martelos e o barulho estridente das serras elétricas cortando o aço. No médico, soube que sofria de hiperacusia, ou fonofobia. Tinha audição excessiva, intolerante aos sons. Zumbidos, cefaleia, vertigens. Frustração e irritação.

Passou à guerra aberta contra o estabelecimento. Seis meses depois da primeira martelada, escreveu: “Marquei para ir ao Ministério Público denunciar o abuso. Levarei laudos médicos. Meu marido se recusa a me apoiar. Sinto-me completamente sozinha. Penso em deixar a casa, não sei que destino tomar”.

Martelo em lataria tanto bate até que desperta a agência do meio ambiente da Prefeitura. O acordo: a oficina usaria um abafador eletrônico e estufas acústicas. Deu-se o armistício precário.

Depois vieram os dias penosos do confinamento. Os empregados fecharam a oficina e foram curtir suas tristezas e espantos nas suas casinhas de subúrbio. Outros saíram à caça rara de ocupações clandestinas. Um deles ficou na vigilância das garagens.

Fenômeno social da pandemia abateu todo mundo. Na casa amarela, sentimentos de vazio, insônia, ansiedade e uma incontrolável angústia. O diário apontou: “A ameaça desse vírus parece que tem me causado transtorno depressivo”. Na comunidade, o silêncio só era quebrado pela TV do vizinho, ligada vinte e quatro horas nos canais católicos, transmitindo uma reza interminável. Pouco a pouco começaram a concentrar todo o sentido da vida na reflexão patológica daquela doença e seu contágio. Ela e o marido, presos num círculo de solidão ilimitado como a “Ave Maria” do rosário insano do vizinho.  

No vigésimo oitavo dia do isolamento, ela despertou com a sonância do malho no aço. A oficina voltou a funcionar. Tossiu, botou a máscara inútil, saiu da frequente insônia para o quintal. A manhã silenciosa emoldurava o ruído do ofício sendo retomado. O raspar metálico não provocou neurastenia. Outros sons acompanhando o levantar do sol, compondo a orquestra de um cotidiano de ostensiva normalidade. Voltou ao quarto e escreveu: “Graças a Santo Elói, protetor dos metalúrgicos, a oficina voltou ao trabalho. Essa esperança de normalidade me acalma. Estava com medo de não receber mais meus proventos de aposentada. Sem trabalho, não haveria impostos”. No quintal, o ruído se ampliava.




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