Quando comprou a casa, inaugurou
seu momento de realização plena, junto com o jardim modesto, as estruturas
antigas e sólidas, a pracinha, o jeito de comunidade harmoniosa. “É aqui que eu
vou morrer”, refletia com feliz taciturnidade. Comprou e vem pagando os juros
hiperbólicos do banco usureiro e oficial. Sabe que abotoará a jaqueta
amortalhada sem saldar o débito iníquo.
Aposentada, cuidava de suas
plantinhas no fundo do quintal concretado. Verdes joias a debulhar-se nos
jarrinhos. Alecrim, agrião, alfazema, alcaçuz, babosa, boldo-do-chile,
camomila, carqueja, erva-cidreira, jaborandi, malva, macela-do-campo, tudo pela
ordem alfabética, dispostas conforme seu jeito metodizado. E anotava no caderno
os pequenos lances do dia a dia.
Fazia sessenta e cinco anos
diluída nas lembranças fragmentadas de uma existência corriqueira. Professora
rudimentar, como se dizia nos tempos do Onça. Acomodada com o cônjuge. Palavra
tão antipática quanto o magistrado ignorante. Marido idem. E ausente. Desfeito
no ramerrame de longa maridagem despovoada de benquerença. Ia levando, porque a
medida da mulher é ser deserto, pensava. Cultivava seus silenciosos vendavais.
Dez anos de domicílio, serena e
cordial com os vizinhos. Ensinando receitas, trocando pratos. Necessidade de
dialogar com pessoas positivas e inspiradoras. Aparecia toda tarde na casa do
velhinho diabético e cadeirante para um dedo de prosa, um chá calmante, uma
reza de resistência.
Anotou no diário: “Hoje mandei
destelhar a casa. Encontrada foto da antiga dona. Plantarei rosas e violetas em
sua homenagem. De certa forma ela é minha amiga de moradia. Viveu aqui tanto
tempo. Sinto que ela me espia pelas frestas das portas, acho que comovida pelos
meus cuidados com seu antigo lar. Pintei de amarelo. Li nesses almanaques
inúteis que o amarelo corresponde à sensação provocada na visão humana pela
radiação monocromática, cujo comprimento de onda é de 597 nanômetros. Noção zero
do que isso significa. Mas acho o louro das paredes cativante”.
Dois anos atrás, o diário
registrou a primeira queixa de vizinho: “Instalaram uma oficina de lanternagem
na parte de trás da casa. De maneira que ando irritadiça, desconfortável com os
sons”.
Quinze dias após a anotação,
lançou no caderno: “Quase nunca estou indo ao quintal. Minhas plantinhas
abandonadas. Não vou além da cozinha. Os ruídos desequilibram meu organismo”.
Sua vida passou a pulsar ao som agudo
dos martelos e o barulho estridente das serras elétricas cortando o aço. No
médico, soube que sofria de hiperacusia, ou fonofobia. Tinha audição excessiva,
intolerante aos sons. Zumbidos, cefaleia, vertigens. Frustração e irritação.
Passou à guerra aberta contra o
estabelecimento. Seis meses depois da primeira martelada, escreveu: “Marquei
para ir ao Ministério Público denunciar o abuso. Levarei laudos médicos. Meu
marido se recusa a me apoiar. Sinto-me completamente sozinha. Penso em deixar a
casa, não sei que destino tomar”.
Martelo em lataria tanto bate até
que desperta a agência do meio ambiente da Prefeitura. O acordo: a oficina
usaria um abafador eletrônico e estufas acústicas. Deu-se o armistício
precário.
Depois vieram os dias penosos do
confinamento. Os empregados fecharam a oficina e foram curtir suas tristezas e
espantos nas suas casinhas de subúrbio. Outros saíram à caça rara de ocupações
clandestinas. Um deles ficou na vigilância das garagens.
Fenômeno social da pandemia
abateu todo mundo. Na casa amarela, sentimentos de vazio, insônia, ansiedade e
uma incontrolável angústia. O diário apontou: “A ameaça desse vírus parece que
tem me causado transtorno depressivo”. Na comunidade, o silêncio só era
quebrado pela TV do vizinho, ligada vinte e quatro horas nos canais católicos,
transmitindo uma reza interminável. Pouco a pouco começaram a concentrar todo o
sentido da vida na reflexão patológica daquela doença e seu contágio. Ela e o
marido, presos num círculo de solidão ilimitado como a “Ave Maria” do rosário
insano do vizinho.
No vigésimo oitavo dia do
isolamento, ela despertou com a sonância do malho no aço. A oficina voltou a
funcionar. Tossiu, botou a máscara inútil, saiu da frequente insônia para o
quintal. A manhã silenciosa emoldurava o ruído do ofício sendo retomado. O
raspar metálico não provocou neurastenia. Outros sons acompanhando o levantar
do sol, compondo a orquestra de um cotidiano de ostensiva normalidade. Voltou
ao quarto e escreveu: “Graças a Santo Elói, protetor dos metalúrgicos, a
oficina voltou ao trabalho. Essa esperança de normalidade me acalma. Estava com
medo de não receber mais meus proventos de aposentada. Sem trabalho, não
haveria impostos”. No quintal, o ruído se ampliava.
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