quinta-feira, 23 de abril de 2020

Crônica da melancolia arcaica



A programação dos festejos dos cem anos de Sivuca foi desorganizada pela pandemia. Sua cidade natal, a centenária Itabayanna, vem sendo alvo dos refletores de poetas, historiadores, pesquisadores e jornalistas. A cidade, no entanto, perde seus referenciais. Nossa cena comum não tem mais a graça, erudição e elegância que teve nos anos dourados do começo do século vinte. Ou dos anos sessenta, quando cheguei de minha Timbaúba e sentei praça na terra de Vladimir Carvalho, Zé da Luz, Otto Cavalcanti, Abelardo Jurema e Ratinho, músico e cômico fenomenal.
Foi assim, nessa investigação sobre a nação de Sivuca, que o historiador caiçarense Jocelino Tomaz de Lima trouxe à luz fotos da velha Itabaiana publicadas nas revistas “Nova era”, de 1921 a 1925, e “Almanaque da Parahyba”, de 1934. “Como “Zé da Luz” nasceu em 1904 e viveu na cidade até 1939, essa é a Itabaiana que recepcionou sua poesia. Quanto a Sivuca, que é de 1930, era mais ou menos assim a Itabaiana na qual ele veio ao mundo”, conclui Jocelino. Essas imagens certamente farão brilhar os olhos de itabaianenses dedicados à preservação de sua história e despertar a curiosidade das novas gerações. O professor Flaviano Maximus, a historiógrafa Margaret Lígia Santiago Bandeira, o pesquisador Artur Anderson, a jornalista Clévia Paz, o ativista cultural Luciano Marinho certamente ficarão extasiados com o material. Esse pessoal sabe aliar fervor de patrício com rigor acadêmico, graças ao trabalho singular de engajados investigadores da cultura, como não existe mais. A geografia humana de Itabaiana e seu ímpeto humanista também podem ser personalizados na professora Renaly Oliveira, outra dedicada preservacionista do que temos de memória e narrativa itabaianense.

Aconteceu que eu não havia definido um tema para a crônica de hoje. Pensei em São Jorge Guerreiro, o Jorge da Capadócia e sua lança justiceira furando a bolha do fascismo tupiniquim, porque hoje é dia do santo matador de dragão. Soube que esse Jorge era protetor de exércitos. Outras fontes garantem que ele nunca existiu. Talvez porque o processo democrático brasileiro tem sido bombardeado pelos fardados há tanto tempo, desisti hoje de saudar esse mito esotérico. Daí pedi sugestão de assunto a uma amiga na doce solidão de sua casa de exílio sob o flagelo da peste. Saudade, essa emoção que se amontoa sob o travesseiro, a mesa posta, as palavras não ditas, a vivência interrompida. Saudade seria o mote. Em assim sendo, ao receber as fotos da minha cidade adotiva, confesso que saí navegando em um deslocamento sensitivo buscando um tempo em que não existimos. Reproduzo na consciência as velhas ruas e praças por onde andei muitos anos após feitas as fotos e as figuras humanas que viraram poesia nas imagens, reativando nossa nostalgia extemporânea. Cobertas pela bruma do tempo, as fotos de um mundo distante e circunjacente transitam nas profundezas do nosso inconsciente pessoal e até coletivo.

É essa saudade que rompe o açude da relembrança e verte suas águas imemoriais no nosso destino comum de conterrâneos, imagens cheias de luz e harmonia. Saudade do modelo de vida que levavam, daquela cidade jardim, a Atenas do agreste paraibano, delírio que, de certa forma, chega a dar um novo significado para nossa existência. Sinto pena de mim porque não vi as figueiras ao longo das avenidas, os caramanchões, as bandas filarmônicas, os clubes de jazz, os jornais e revistas, o carnaval imponente, o bonde, os saraus poéticos no coreto, as mocinhas alvoroçadas na estação do trem. Essas fotos em algum instante me apartaram das conexões tangíveis e me levaram no trem de outra dimensão para o país saudade, além do tempo e do espaço.
















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