quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Pedras na lua e pelejas no planalto

trajetória do documentarista Vladimir Carvalho é iluminada pelo crítico de cinema Carlos Alberto Mattos em "Pedras na lua e pelejas no Planalto". Logo no início, Mattos descreve como Carvalho foi precursor de dois momentos importantes da cinematografia brasileira: o Cinema Novo e, após sua mudança para a capital federal, o florescimento de um cinema tido como legitimamente brasiliense. No livro, pela própria voz de Carvalho, entende-se como ele procurou equilibrar suas origens nordestinas com o concreto armado do Distrito Federal em uma trajetória artística única.

Estou lendo esse livro que tem 300 páginas, anotando os trechos mais interessantes que passarei aqui para os meus seis leitores, à medida em que for avançando na leitura.

CARNAVAL DE ITABAIANA – “Eu me lembro, e essa é uma das minhas primeiras lembranças, do carnaval de 1939 que assisti em plongé, do alto dos ombros do primo Jonjoca. Entre pavor e excitação, vi os primeiros mascarados, palhaços, um famoso folião que se fantasiava de urso, tudo recendendo a lança-perfume. O carnaval de Itabaiana, dizia-se, rivalizava com o do Recife. Do Alto dos Currais, vi o bloco do Zé Pereira saindo na boca da noite, o volumoso séquito de foliões portando balões coloridos e iluminados. No futuro, eu haveria de exteriorizar essa forte impressão através de um guache que pintei e guardo comigo”.

FEIRA DE ITABAIANA – “Na feira de Itabaiana, chamava minha atenção o simulacro em miniatura de uma casa de farinha, que era exibida dentro de uma grande caixa, através de pequenos visores. À medida que o operador girava uma manivela, víamos os bonecos reproduzirem em detalhes a atividade do cevador, o abastecimento do forno etc. Era uma espécie de realejo visual, ou arte cinética matuta.”

BUMBA-MEU-BOI NA BAHIA – “Na boemia fajuta de jovem sem dinheiro, eu perambulava pela Canela, o Campo Grande, a Vitória, a Baixa do Sapateiro, o Taboão. Conheci Gilberto Gil estudando Administração de Empresas e cantando nos bares da orla. Frequentei as festinhas na casa de Gracinha (Gal Costa), os shows de Tom Zé e Caetano na boate O’Clock, as atividades do CPC baiano, para o qual fui convocado por Geraldo Sarno para assisti-lo na área de cinema. Numa das ações do CPC, Tom Zé conduziu um bumba-meu-boi alegórico pela Avenida Sete, até a Praça da Sé, contando a história da exploração do povo brasileiro.”

O MAÇOM – “Como se não bastasse tanto ecletismo, meu pai ainda aceitou um convite para entrar para a Maçonaria. Na sequência, com cerca de 12 anos, fui iniciado como lowton numa cerimônia belíssima, em que desfilei sob o túnel de espadas erguidas e tomei ritualisticamente o vinho, o pão, o mel e o sal.”

“Depois da morte do meu pai, determinado a ajudar no sustento da família, vali-me da solidariedade maçom para conseguir um emprego de vendedor de estampas de santos a domicílio. Foi quando desencantei-me com a Maçonaria, pois o velho não pretendia me ajudar, mas simplesmente ser meu patrão.”

IDEOLOGIA – “Não posso negar que esse período de estudos e atividades, com o aprofundamento contínuo dos conceitos disseminados pelo Partido, teve uma enorme importância na minha formação. Na minha e na de muita gente neste país. Descontados alguns sectarismos e equívocos, a escola do Partido – como era chamada no jargão próprio – estruturou-me moralmente para a vida. A insistência na esperança é um dos traços que dela herdei. Por isso é que, entre Beckett e Brecht, fico com Brecht. O homem tem saída, sim.”

MEMÓRIA FERROVIÁRIA DE ITABAIANA – “No Triângulo, um muro de frágeis tijolos aparentes separava nossa casa de uma vila de moradias mais humildes, numa das quais morava a família do maquinista Chico Félix, a quem minha mãe costumava presentear com cestas de gêneros alimentícios. Eu me aproximei de Erasmo, o filho do maquinista.”
“O trem sempre foi um elemento marcante na paisagem da minha memória. Não exatamente esses trenzinhos quase de brinquedo, mas os dragões metálicos e baforentos que faziam o transporte de gado e gente na ferrovia então arrendada à Great Western Railway do Brasil.

Itabaiana ficava a meio caminho entre Campina Grande, João Pessoa e Recife. Na minha época de garoto, a cidade era margeada, de um lado, pelo rio Paraíba, e de outro lado pela grande ferrovia. As boiadas trazidas das regiões próximas e do alto sertão embarcavam nesse trem rumo aos matadouros. À margem da estação ficava o curral ´para facilitar o embarque. Nosso bairro era chamado Triângulo, em virtude de uma importante bifurcação ferroviária. As casas da famílias, separadas por quintais, formavam uma espécie de vila à margem da estrada de ferro.

O trem pontuava o cotidiano da cidade. Havia a hora de passar o Bacurau ou o Subúrbio, conforme os apelidos de cada comboio. Maquinistas silvavam apitos característicos ao cruzar seus bairros, notificando os familiares e amigos de sua passagem. Quem precisasse acordar muito cedo guiava-se pelo resfolegar do trem das madrugada, em sua lenta subida de um aclive à saída de Itabaiana.

Os trilhos cortavam a cidade e assumiam relevo na sociologia local. Em certo ponto, a ferrovia separava os bairros familiares da chamada Mandchúria, a zona do meretrício. Assim, quando um jovem era iniciado nas aventuras da Rua do Carretel, dizia-se que o sujeito atravessou a linha do trem.


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