Passageiros passam dificuldades nos ônibus coletivos |
“Cidade de lábios tristes e
trêmulos, onde encontrar o asilo na tua face?” – Roberto Piva
Contei ontem sobre o medo que
impera na cidade. A violência criando um vácuo insano na comunidade. Vindo de
plagas ermas e estranhas, o velhinho conversa com a velhinha. Ela, cocó
apurado, vestidinho limpinho, florido, gordinha. Ele, chapéu de massa antigo,
óculos fora de moda e roupa “engomada”. Sentados na primeira fila de poltronas
do coletivo.
--- Olhe, eu se fosse o
governo, botava esses bandidos tudinho pra trabalhar, pra suar e não pensar
besteira. As mulheres trabalham na cadeia, por que os homens ficam deitados nas
camas ou no chão, só pensando em fazer o mal?
Isso era o que dizia a velhinha
para o seu companheiro de viagem. É uma das pessoas que não defendem o
extermínio puro e simples dos bandidos, como certo companheiro meu.
Contentava-se com trabalho forçado.
O ônibus prosseguia no seu
conservadorismo reacionário de andar por uma só faixa, a da angústia social.
Numa parada, entrou o negão com a cruz suástica tatuada na testa, com seu
charme de hippie de uma contracultura
contraditória. Cada um ficou sozinho com seu temor, até o velhinho e sua dama
de outra época. O cobrador sentiu um desejo absurdo de ter um alvará de soltura
e descer daquele ônibus para cuidar de sua vida marinheira, que o que ele
queria mesmo era ser navegador, e não contemplador impassível das misérias
urbanas. Órfão de vôo, ficou alimentando sua falta de fôlego.
Mas o negão sorriu pra um e pra
outro, botou as moedinhas do troco na sacolinha suja e foi se sentar na última
poltrona. Os olhos dos passageiros convergiram para sua cabeça afro doida, seu
arranjo capilar esquisito. Cada um tentando construir mentalmente a trajetória
do negão com a cruz suástica na testa. “Um demônio”, pensou a velhinha. “Saiu
da cadeia agorinha”, imaginou o cobrador. O velhinho com seu tic nervoso,
puxando as orelhas grandes, não pensava em nada a não ser na cena antiga do
cavalo-marinho para onde ele fugia nos momentos de tristeza, capitão do
folguedo que foi.
O dia finalmente nascia de todo
entre as curvas e brumas de uma noite mal chovida. O tempo neurótico daquele
ônibus deu um tempo. O veículo engolia sua velocidade como destino a ser
cumprido, saltando e mergulhando nas poças e nos cansaços daquele povo amargo,
mal dormido e medroso. A velhinha apareceu de novo com o sorriso do sol e com a
saída do negão.
--- Pensa que eu tive medo?
Olhe aqui minha Bíblia. Jesus é minha fortaleza e tudo posso em seu nome. Ta
amarrado em nome de Jesus.
E bateu na Bíblia com suas mãos
fortes de velha mourejadora.
“Renegamos ao sepulcro a
piedade cristã”, escreveu um poeta do Piauí. Nesta terra onde canta a precisão,
Lúcifer mendiga um baseado na paisagem sucata de uma cidade onde pulsa um
milhão de mal estar e culpa.
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